Primeiro a generosidade




 Por Ṭhānissaro Bhikkhu

Março de 2003
Muitos anos atrás quando Ajaan Suwat estava conduzindo um retiro no IMS, fui seu intérprete. Após o segundo ou terceiro dia de retiro, ele se virou para mim e disse: "Eu percebo que, quando essas pessoas meditam, ficam terrivelmente sombrias". Você olhava para o outro lado da sala e todas as pessoas estavam sentadas de uma forma muito rigorosa, seus rostos tensos, os olhos fechados apertados. Era quase como se tivesse escrito Nirvana ou Nada nas suas testas. Ele atribui esta seriedade ao fato de que a maioria das pessoas aqui no Ocidente vêm à meditação budista sem qualquer preparação em outros ensinamentos budistas. Eles não tiveram nenhuma experiência em ser generosos em consonância com os ensinamentos do Buda sobre doação. Eles não tiveram nenhuma experiência em desenvolver a virtude de acordo com os preceitos budistas. Eles vêm aos ensinamentos do Buda sem testá-los na vida cotidiana, então não têm a sensação de confiança que precisam para atraí-los para as partes difíceis da meditação. Eles sentem que precisam confiar simplesmente na mais pura determinação. Se você observar a forma como a meditação, virtude e generosidade são ensinadas aqui, é exatamente o oposto de como é ensinada na Ásia. Aqui, as pessoas se inscrevem em um retiro para aprender um pouco de meditação, e somente quando chegam ao local do retiro é que aprendem que precisarão observar alguns preceitos durante o retiro. E então, ao final do retiro, elas aprendem que antes de ir embora, devem ser generosas. É tudo ao contrário. Na Tailândia, o primeiro contato que as crianças têm com o Budismo, após terem aprendido o gesto de reverência, é sobre doação. Você vê pais pegando na mão dos seus filhos enquanto um monge passa em sua esmola de alimentos, levanta-as e os ajuda a colocar uma colher de arroz na tigela do monge. Ao longo do tempo, à medida que as crianças começam a fazer isso sozinhas, o processo tornar-se cada vez menos mecânico, e após um tempo, elas começar a ter prazer em doar. A princípio, esse prazer pode parecer contra intuitivo. A ideia de que você ganha felicidade ao dar as coisas não surge automaticamente na criança. Mas com a prática, verá que é verdade. Afinal, quando você dá, você coloca a si mesmo em uma posição de riqueza. O presente é uma prova de que você tem mais do que o suficiente. Ao mesmo tempo, lhe dá uma sensação de valor como pessoa. Você é capaz de ajudar outras pessoas. O ato de doar também cria um senso de espaço na mente, porque o mundo em que vivemos é criado pelas nossas ações, e o ato de doar cria um mundo espaçoso; um mundo onde a generosidade é um princípio, um mundo onde as pessoas têm mais que o suficiente, o bastante para compartilharem. E isso cria um bom sentimento na mente. A partir daí as crianças estão expostas à virtude: à prática dos preceitos. E, novamente, do ponto de vista de uma criança, é contra intuitivo que você será feliz por não fazer certas coisas que queira – como quando você quer tomar algo, ou quando quer mentir para encobrir sua vergonha ou para se proteger da crítica e punição. Mas com o tempo você começa a descobrir que, sim, há um senso de felicidade, um senso de bem-estar que surge de ser virtuoso, de não ter que mentir, de evitar atos ruins, de ter um senso de que atos bons são benéficos para você. Então, quando você vem à meditação através da base de dar e ser virtuoso, você já teve experiência em aprender que existem formas de felicidade contra intuitivas no mundo. Quando você foi treinado através da exposição aos ensinamentos do Buda, aprendeu a felicidade mais profunda que vem de dar, a felicidade mais profunda que vem de se restringir de ações inábeis, não importando o quanto você queira fazê-las. Quando vem à meditação, você desenvolveu um certo senso de confiança de que até agora o Buda tem razão, então você lhe dá o benefício da dúvida na meditação. Essa confiança é o que permite superar muitas das dificuldades iniciais: as distrações, a dor. Ao mesmo tempo, o espaço que vem da generosidade dá-lhe a mentalidade certa para a prática de concentração, dá-lhe a mentalidade certa para a prática de insight - porque quando se senta e se concentra na respiração, que tipo de mente você tem? A mente que você criou através de suas ações generosas e virtuosas. Uma mente espaçosa, não a mente estreita de uma pessoa que não tem o suficiente. É a mente espaçosa de uma pessoa que tem mais que suficiente para compartilhar, a mente de uma pessoa que não tem arrependimentos ou negação sobre as ações passadas. Em suma, é a mente de uma pessoa que percebe que a verdadeira felicidade não vê uma dicotomia acentuada entre o seu próprio bem-estar e o bem-estar dos outros. Toda a ideia de que a felicidade deve consistir em fazer as coisas apenas de acordo com suas razões egoístas ou para outras pessoas sacrificando a si mesmo - a dicotomia entre os dois - é algo muito ocidental, mas é antitético aos ensinamentos do Buda. De acordo com os ensinamentos do Buda, a verdadeira felicidade é algo que, pela sua natureza, se difunde. Ao trabalhar para o seu próprio benefício verdadeiro, você está trabalhando para o benefício de outros. E trabalhando para o benefício de outros, você está trabalhando para o seu próprio. No ato de dar aos outros, você ganha recompensas. No ato de manter os preceitos, mantendo-se firme em seus princípios, protegendo os outros do seu comportamento inábil, você ganha também. Você ganha atenção; você ganha em seu próprio senso de valor como pessoa, sua própria auto estima. Você se protege. Então você vem à meditação pronto para aplicar os mesmos princípios ao treinamento em tranquilidade e percepção. Você percebe que a meditação não é um projeto egoísta. Você está sentado aqui tentando entender sua ganância, raiva e ilusão, tentando controlá-los, o que significa que você não é a única pessoa que se beneficiará da meditação. Outras pessoas se beneficiarão - também estão se beneficiando. À medida que você se torna mais consciente, mais alerta, mais hábil em minimizar os obstáculos em sua mente, outras pessoas estão menos sujeitas a esses obstáculos também. Menos ganância, raiva e ilusão surgem em suas ações, e as pessoas ao seu redor sofrem menos. Sua meditação é um presente para elas. A qualidade da generosidade, o que eles chamam de caga em Pali, está incluída em muitos conjuntos dos ensinamentos do Dhamma. Um deles é o conjunto de práticas que levam a um renascimento afortunado. Isso não se aplica apenas ao renascimento que vem após a morte, mas também aos estados de ser, os estados de espírito que você cria para si mesmo momento a momento. Você cria o mundo em que você vive através das suas ações. Ao ser generoso - não só com coisas materiais, mas também com seu tempo, sua energia, seu perdão, sua vontade de ser justo com outras pessoas - você cria um mundo bom para viver. Se seus hábitos tendem mais para ser mesquinho, eles criam um mundo muito confinado, porque nunca há suficiente. Sempre falta isso ou aquilo, algo vai desaparecer ou ser tirado de você. Então, é um estreito, Terrível mundo que você cria quando não é generoso, ao contrário do confiante e aberto mundo que você cria através de atos de generosidade. A generosidade também conta como uma das formas da Nobre Riqueza, o que é a riqueza senão uma sensação de ter mais do que suficiente? Muitas pessoas materialmente pobres são, em termos de sua atitude, muito ricas. E várias pessoas com muita riqueza material são extremamente pobres. Aquelas que nunca possuem o suficiente: elas são aquelas que sempre precisam de mais segurança, sempre precisam se esconder mais. Essas são as pessoas que precisam construir muros em torno de suas casas, que têm que viver em comunidades fechadas por medo de que outras pessoas retirem o que elas têm. Esse é um tipo de vida muito pobre, um tipo de vida confinado. Mas como você pratica generosidade, percebe que pode obter menos, e que há um prazer que surge da doação às pessoas. Bem há uma sensação de riqueza. Você tem mais do que suficiente. Ao mesmo tempo, você quebra barreiras. Transações monetárias criam barreiras. Alguém lhe entrega algo, você deve entregar o dinheiro de volta, então há uma barreira ali mesmo. Caso contrário, se você não pagou, o objeto não irá até você devido a barreira. Mas se algo é livremente dado, quebra uma barreira. Você se torna parte da extensa família dessa pessoa. Na Tailândia, os termos que os monges usam para se dirigir a seus apoiadores leigos é o mesmo que eles usam com seus parentes. O dom do apoio cria um senso de relação. No monastério onde eu fiquei - e isso inclui os adeptos leigos, bem como os monges - era como uma grande família extensa. Isso é verdade para muitos dos monastérios na Tailândia. Há uma sensação de relação, uma ausência de limites. Ouvimos muito falar sobre “interligação”. Muitas vezes é explicada em termos da Origem Dependente, o que é um uso muito inadequado do ensinamento. A Origem Dependente ensina a conexão da ignorância com o sofrimento, a conexão do desejo com o sofrimento. Essa é uma conexão dentro da mente, e é uma conexão que precisamos cortar, porque continua sofrendo sem parar, repetidamente, em vários ciclos. Mas há outro tipo de conexão, conexão intencional, que vem através de nossas ações. Estas são conexões do kamma. Agora, no Ocidente, muitas vezes temos problemas com os ensinamentos sobre o kamma, que pode ser por isso que queremos os ensinamentos sobre a conectividade sem o kamma. Então, vamos procurar em outros lugares nos ensinamentos do Buda para encontrar um raciocínio ou uma base para um ensino sobre conectividade, mas a base real para uma sensação de conexão vem através do kamma. Quando você interage com outra pessoa, uma conexão é feita. Então, pode ser uma conexão positiva ou negativa, dependendo da intenção. Com generosidade, você cria uma conexão positiva, uma conexão útil, uma conexão onde você está feliz por não haver barreiras, uma conexão onde boas coisas podem fluir de um lado para o outro. Se é kamma inábil, você está criando uma conexão, você está criando uma abertura que, mais cedo ou mais tarde, fará com que se arrependa. Há um ditado no Dhammapada de que uma mão sem ferida pode conter veneno e não ser prejudicada. Em outras palavras, se você não tem nenhum kamma ruim, os resultados do kamma ruim não virão para você. Mas se você tiver uma ferida em sua mão, então, se você segurar o veneno, irá escorrer pela ferida e matá-lo. O kamma ruim é apenas isso, uma ferida. É uma abertura para coisas venenosas entrarem. O princípio contrário também funciona. Se houver uma conexão de comportamento hábil, uma boa conexão é formada. Esse tipo de conexão positiva começa com generosidade e cresce com o dom da virtude. Como o Buda disse, quando você mantém seus preceitos, não importa quais, sem exceções, é um presente de segurança para todos os seres. Você dá segurança ilimitada a todos, e assim você também compartilha dessa segurança ilimitada. Com o dom da meditação, você protege outras pessoas dos efeitos de sua cobiça, raiva e ilusão. E você também fica protegido. Então, isso é o que a generosidade faz: deixa sua mente mais espaçosa e cria boas conexões com as pessoas ao seu redor. Ela dissolve os limites que evitaram a felicidade de esse espalhar. Quando você vem à meditação com esse estado de espírito, isso muda totalmente a maneira como você aborda a meditação. Muitas pessoas chegam à meditação com a pergunta: "O que eu vou ganhar durante esse tempo meditando?” Particularmente no mundo moderno, o tempo é algo que não sabemos lidar. Então, a questão de obter, obter, obter da mediação está sempre presente. É aconselhável apagar essa ideia de obtenção, mas você não pode apagá-la se estiver cultivando isso como uma parte habitual da sua mente. Mas se você vem à meditação com experiência de ser generoso, a questão torna-se "O que eu dou à meditação?" Você dá toda a sua atenção. Você dá o esforço, você está feliz em pôr o esforço, porque aprendeu com a experiência de que um bom esforço na prática do Dhamma traz bons resultados. E para que a pobreza interna de "O que eu estou ganhando desta meditação?" seja apagada. Você vem à meditação com um senso de riqueza: "O que posso dar a essa prática?" Você verá, é claro, que acabará ganhando muito mais se começar com a atitude de dar. A mente está mais disposta a desafios: "E se eu dar mais tempo? Que tal meditar até mais tarde da noite do que eu costumo fazer? Que tal levantarme mais cedo pela manhã? Que tal prestar atenção mais constantemente ao que estou fazendo? Como se sentar por mais tempo apesar da dor?" A meditação então se torna um processo de entrega e, claro, você ainda obtém os resultados. Quando você não está tão rancoroso com seus esforços ou tempo, coloca menos e menos limitações no processo de meditação. Dessa forma, os resultados certamente serão menos parciais, mais ilimitados, também. Portanto, é importante que desenvolvamos a Nobre riqueza de generosidade para conduzir a nossa meditação. Os textos mencionam que quando você fica desanimado em sua meditação, quando a meditação fica seca, você deve lembrar de seus atos generosos do passado. Isso dá uma sensação de auto estima, um sentimento de encorajamento. Obviamente, se você nunca praticou a generosidade, do que vai se lembrar? Por isso que é importante que você se aproxime da meditação tendo praticado a generosidade com muita consciência. Muitas vezes perguntamos: "Como faço para aplicar a meditação no mundo?" Mas também é importante que você traga boas qualidades do mundo para sua meditação, boas qualidades de sua vida cotidiana e que você as desenvolva regularmente. Pensar nos últimos atos de generosidade fica seco depois de um tempo, se houver um ato de generosidade que aconteceu há muito tempo. Você precisa de nova generosidade para dar-lhe encorajamento. Então, por isso, quando o Buda falou sobre as formas de mérito, ele disse: "Não tenha medo do mérito, pois o mérito é outra palavra para a felicidade". A primeira das três principais formas de mérito é dana, doar, que é a expressão da generosidade. O dom de ser virtuoso se baseia no simples ato de doar, e o dom da meditação se baseia em ambos. Claro, uma grande parte da meditação consiste em abandonar: largar distrações, largar pensamentos inábeis. Se você está acostumado a abandonar as coisas materiais, é muito mais fácil começar a experimentar abandonar as atitudes mentais inábeis - coisas que você manteve durante tanto tempo que acha que precisa delas, mas quando você realmente as observa, vê que na verdade não são necessárias. Na verdade, você vê que elas são um fardo desnecessário que causa sofrimento. Quando você vê o sofrimento e o fato de que ele é desnecessário, você pode deixar ir. Desta forma, o impulso de doar existe por todo o caminho da prática, e você percebe que não está privando a si mesmo de nada. É mais como um comércio. Você dá um objeto material e ganha generosas qualidades mentais. Você dá suas impurezas, e ganha liberdade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O que fazer quando se quebra um preceito?

Angulimala, a história de um assassino até a Iluminação

O estágio de Sotapanna - Como alguém pode saber se foi alcançado?