Sobre o sofrimento e a felicidade
Certa vez o Buddha estava em Savathi, no parque de Anathapindika, Bosque de Jeta. Ali também estavam quatro monges recém ordenados que repousavam sob uma árvore na entrada do monastério. As flores daquela árvore haviam acabado de desabrochar, estavam belas e exalavam um doce aroma. Assim, eles começaram a se recordar de eventos passados, conversando uns com os outros: “De todas as coisas neste mundo, o que vocês acham que traz mais felicidade?”
1) O primeiro deles disse: “Quando a primavera chega, os grandes campos ficam repletos de flores e plantas, todas tão exuberantes que fazem as pessoas sorrir! Estar à vontade em meio a esses campos tão verdes e belos deve ser a maior felicidade”.
2) Um outro falou: “Estar com as pessoas mais queridas, bebendo juntos ou conversando, escutando música e dançando. Estar sempre cercado de amizades e afeto deve ser a maior felicidade”.
3) Outro ainda disse: “Ter muitas posses e recursos, poder conseguir tudo o que se deseja. Sair em carruagens, com as roupas mais elegantes, e ter as outras pessoas te olhando impressionadas de tanta admiração, deve ser a maior felicidade”.
4) Por fim, o último disse: “Uma parceira gentil e bela, elegante, de doce aroma, com maravilhosa compleição. Ter uma amante assim para trazer satisfação ao coração deve ser a maior felicidade”.
E depois de oferecerem suas opiniões do que seria a maior felicidade, eles se questionaram: “E então, o que será o maior sofrimento?”
1) Dentre esses monges novatos, um deles disse: “Queimar de desejo e de luxúria deve ser o maior sofrimento”.
2) O outro disse: “Ter fome e ter sede deve ser o pior sofrimento”
3) Um outro respondeu: “Estar tomado pela ódio e pela frustração deve ser o pior sofrimento”.
4) E o último respondeu: “Sentir pânico e ficar apavorado, ansioso, deve ser o pior sofrimento”.
Quando eles terminaram sua conversa sobre as origens da felicidade e do sofrimento, o Buddha, que sabia o que estavam dizendo, aproximou-se da árvore e lhes disse: “Suas ideias de agora há pouco, sobre os sofrimentos e as formas de superá-los, não estão de acordo com o Dharma. A magnificência da primavera desaparece tão logo o inverno se aproxima. Os amigos e entes queridos em algum momento precisam se separar. As posses e riquezas acabam sendo levadas embora por um desses cinco: ladrões, governantes, incêndios, inundações, ou filhos irresponsáveis. E mesmo um cônjuge agradável facilmente se transforma em fonte de rancor e ódio dentro de uma relação. Como seria possível que tais coisas fossem a felicidade última e derradeira?
"Esse tipo de felicidade que não é duradoura nem substancial, e que, ao fim, esconde muito sofrimento sob sua aparência externa, não pode ser chamado de felicidade real. Mas se alguém se despojasse dos pensamentos de desejo e avidez, então sua mente se tornaria tranquila e liberta de qualquer coisa. Aí reside a verdadeira felicidade! Isso é o que se chama da realização do nirvana.
"O que vocês descrevem como sofrimento, também, não é o verdadeiro sofrimento. Todos os sofrimentos que existem têm como base este corpo. Vocês deveriam saber: tanto a fome, a sede, o calor e o frio, quanto a raiva, a frustração, o rancor e a luxúria, todas essas coisas surgem porque o corpo existe. Portanto, o corpo é a base, é a fonte de muitos sofrimentos. Se quiserem abandonar os sofrimentos, devem concentrar suas mentes e observar a realidade; domando a mente, apaziguados e sem desejos, poderão então realizar o Nirvana: esta é a maneira correta de se abandonar todos os sofrimentos. Do contrário, enquanto persistirem no seu apego ao corpo, sempre persistirá também o seu sofrimento.”
Quando aqueles quatro monges ouviram a explicação do Buddha, eles ficaram impressionados: “Todos os sofrimentos tem como base este corpo. Todas as coisas neste mundo escondem em si sofrimento, são insubstanciais, são impermanentes; nenhuma delas é confiável. Por isso apenas a correta prática pode conduzir à realização do nirvana. Este sim é a suprema felicidade!”.
- História adaptada do livro 佛教故事大全 (Grande Compêndio de Histórias Buddhistas)
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COMENTÁRIO:
"O corpo é fonte de sofrimentos". Essa é uma frase que por vezes aparece nos profundos ensinamentos do Buddha, espantando muita gente. Se mal-entendida, tal frase poderia levar a crer que o corpo é ruim, que deve ser maltratado ou negligenciado. Mas não é assim. Nessa história, Buddha tratou de mostrar como as coisas que aparentam ser felizes e perfeitas, no fundo, trazem suas imperfeições: são todas impermanentes, fugazes e insubstanciais, e como tal não podem aportar uma felicidade duradoura. O mesmo raciocínio se aplicaria também ao nosso corpo físico. Ele não apenas vai atrelado a uma série de necessidades constantes, mas é igualmente impermanente, suscetível a doenças, envelhece, e certamente deixará de existir com o advento da morte. Nessa perspectiva, nem mesmo o nosso querido corpo, o qual buscamos agradar com ambientes belos, comidas saborosas, companhias agradáveis, roupas e posses confortáveis, carinhos e afins, poderia representar uma fonte de felicidade duradoura; até mesmo isso seria ainda insatisfatório, diz o Buddha.
Com esse ensinamento, ele remove da mente dos quatro monges novatos a preocupação constante de paparicar o corpo provendo coisas agradáveis o tempo todo (como se nota pela qualidade nostálgica de suas primeiras respostas). Ao invés disso, ele lhes explica que o desapego, mediante o correto entendimento da realidade, seria um melhor caminho para que encontrassem paz e felicidade derradeiras.
É certo que este corpo humano é precioso, pois não temos outro veículo para praticar e chegar até a iluminação. Precisamos dele, e precisamos cuidá-lo corretamente! Mas é também certo que não precisamos - nem deveríamos - nos aferrar tanto ao corpo e seus prazeres como se estes pudessem durar para sempre. Na verdade não vão durar. Ensinando assim, Buddha nos convida a colocar mais atenção no cultivo correto do caminho espiritual: purificando nossa cobiça, ira e ignorância. Tal seria o mais confiável caminho para a felicidade
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