O sofrimento como base de aprendizagem

 

Ajahn Mudito


Pergunta curta:

Preciso mesmo do sofrimento para aprender? 

Pergunta longa:
O senhor sempre chama a atenção da gente para ficarmos atentos ao sofrimento, que em última instância é uma coisa boa, porque te direciona pra busca espiritual, mas às vezes eu fico um pouco incomodada com essa abordagem. Quando vemos, por exemplo, o primeiro passo do nobre caminho óctuplo, que trata da compreensão correta, o Buddha fala das quatro nobres verdades, mas também fala do Karma: as nossas atitudes têm importância, então se criamos causas favoráveis através do comportamento, da virtude, da renúncia, qualidades que fazem parte desse caminho, nossa vida vai melhorar, nossa vida espiritual e eventualmente nossa vida material vão ficar um pouco mais suaves. O que a gente pode fazer pra não se perder nesse jogo? Você cria causas favoráveis, aí tem uma vida favorável, mas ao mesmo tempo isso pode te levar a um certo comodismo e te fazer despencar novamente. É uma maldade do samsara, você faz as coisas legais e depois começa a fazer as coisas erradas, porque falta a sabedoria. Como a gente pode fazer pra não cair nessa armadilha? Por que eu vou ficar desejando sofrimento pra aprender? Não vou, né.

 Ajahn Mudito:

Às vezes, você não precisa fazer nada, às vezes você cai mesmo. Esse tipo de preocupação é excesso de pensamento, excesso de preocupação. É meio óbvio, não? Você tem sabedoria, você evita, você não tem sabedoria, você cai e aí você aprende. Porque não é só do sofrimento que você tem que se desencantar, você tem que se desencantar dessa felicidade, também. Então às vezes é bom cair mesmo, um pouco. Você vê: a felicidade vem, por causa da felicidade eu fico negligente e aí eu sofro de novo. Aí você sofre, você fica diligente, você melhora a si mesmo, disciplina a si mesmo, aí vem a felicidade. A felicidade vem, você fica negligente, se degenera e sofre. Com o tempo, você começa a entender como esse ciclo funciona, sabe e para de dar importância para ambos. Quando vem sofrimento, “tudo bem, não estou nem aí, o meu caminho é reto”. Aí vem felicidade, “o meu caminho é reto”. A felicidade e o sofrimento podem vir, podem ir, “não estou nem aí, meu caminho é nesta direção”. Isso vem de experiência, esse tipo de sabedoria vem de uma experiência. Tem que atravessar os pensamentos e alcançar lá fundo no coração e para que isso alcance fundo no coração, somente experiência mesmo. Então, à medida que a gente tem inteligência e sabedoria já acumuladas, a gente fica atento. Quando surge algo bom, a mente naturalmente não se empolga tanto. Quando surge algo ruim, ela não se desespera tanto. Ela já tem uma sabedoria, isso é natural, isso é resultado. Não sei se dá pra fazer isso artificialmente, você pensando em algo. Se você achar que lembrar do ensinamento do Buddha pode ajudar...Mas é uma coisa muito íntima, é um refinamento da mente que vem, é difícil de construir artificialmente. Tem que ser limado com o tempo, mesmo. Tem que ser marretado com o tempo, com sol, chuva, frio, calor, esse tipo de coisa que vai limando e vai azeitando. Que nem pedra, a pedra no riacho vai ficando lisinha. A água vai passando, passando, ela vai alisando aos poucos, vai ficando refinada. Fazer coisas só vai até certo ponto, não adianta querer resolver tudo fazendo algo. Como é que eu faço...? Não faz nada, sofre um pouco. Fazer só resolve até certo ponto. A gente tem muita ilusão com a ideia de livre-arbítrio. Eu não sei o que as pessoas pensam sobre isso: livre-arbítrio. As pessoas têm uma fantasia muito exagerada quanto à volição e às próprias atitudes: “vou fazer isso, vou fazer aquilo”. Não vai, não. O pessoal vira monge e vê isso claramente: agora não tenho mais trabalho, não tenho namorada, estou aqui na paz, na floresta e ainda assim nada de meditação. Aí você pensa: “já sei, vou sentar uma hora, duas horas e com certeza vou conseguir pacificar a mente”. Não, não vai conseguir. É um treinamento bem mais amplo do que isso. Por isso é que eu não gosto de mosteiro em que as pessoas vão lá e ficam meditando o dia inteiro. Eu não acho que isso seja saudável. É uma coisa global, você vai limando seu caráter pouco a pouco. O treinamento (do monge) envolve prestar reverência à imagem do Buddha, acordar de manhã, limpar o chão, prestar reverência ao mestre, quando ele volta do pindapata, você vai lá e lava os pés dele, não só dele, como também de todos os monges mais velhos que você. Quando termina a refeição, você pega a tigela do monge mais velho e lava a tigela dele, mesmo que você o odeie: “esse cara é um mala sem alça”, então é a tigela dele mesmo que você vai lavar. Esse tipo de coisa, sabe? Você vai limando sua personalidade, vai limando as arestas. Eu não sei se já contei, uma coisa que foi muito útil pra mim foi ter que limpar cocô de cachorro às 4h da manhã. Aquilo doeu, viu? Primeiro que nem era pra ter cachorro no mosteiro, mas tinham 5. Não era para eles subirem na sala de meditação, eles subiam. Aí o diabo da cachorra estava no cio e ficava arrastando o traseiro no chão e deixava uma faixa assim. Errado de novo. Então era pra todo mundo vir junto, todos os monges, e ajudarem a limpar. Não vinha ninguém, só eu. Aí machucou. “Eu não vim aqui para fazer isso. Que absurdo, ficar limpando cocô de cachorro às 4 da manhã, sozinho”. Ah, beleza, então é aqui mesmo que eu vou ficar. Vou limpar tudo, vai ficar bem limpo. Não vou faltar um dia, aqui. O dia que não tiver mais irritação na minha mente se eu quiser vir, eu venho, senão eu não venho. Se vocês não estão nem aí, eu também não estou, não. Mas na medida que há aversão é aqui mesmo que eu vou praticar, todo dia vou estar aqui no horário marcado, sem falta, e vou continuar fazendo até vencer isso. Então esse tipo de coisa vai limando, vai capacitando a mente, vai gerando sabedoria, vai ajudando você a saber lidar com a mente, vai ajudando você a enxergar melhor quais são os seus pontos fracos, quais são os pontos onde é preciso trabalhar. Quando você está vivendo uma vida protegida, confortável, você não enxerga: “onde é que o bicho pega, mesmo?” Ninguém sabe, porque está tudo acolchoado, você não sabe dizer: onde estão meus pontos fracos, onde estão meus pontos fortes? Então, você trabalha de forma indireta, também. Você não trabalha só de forma volitiva: “eu vou especificamente fazer isso”. Nesse trabalho, você vai pegando pelas beiradas, você vai criando fundações para a mente se apoiar. Então, como é que você evita cair nessas armadilhas? Não evite, simplesmente vá trabalhando. Faça o que você enxerga que é bom. Aquilo que é bom fazer, faça. É ruim fazer isso? Ok, vamos evitar. Não precisa trabalhar diretamente no assunto. Você pode trabalhar de maneira mais ampla, ir criando mecanismos, desenvolvendo ferramentas, tirando o excesso de sujeira e aí essa mente bem qualificada vai saber lidar melhor com o sofrimento, vai saber lidar melhor com a felicidade. Não precisa ser tudo tão específico. Isso é uma característica da mente racional, da mente discursiva, ela lida com assuntos. Cada um tem uma gavetinha separada: agora vou lidar com “este” assunto, mas essa não é a única forma de existir, não. Não é a única forma de existir, não é a única forma de trabalhar e nem é a mais eficiente, na verdade. Aliás, eu acho que ela só funciona bem em coisas muito superficiais, em coisas mais profundas, esse tipo de ferramenta não chega, ela não alcança. Então não se preocupe tanto: “como é que é que eu faço?” Não faça. Não se preocupe com esse assunto. Se preocupe em fazer o que é bom, em evitar o que é ruim e vamos ver o que acontece. Tenha coragem de encarar a felicidade, tenha coragem de encarar o sofrimento. Por isso é que é importante o que eu falei antes (em outra pergunta): desenvolva suas ferramentas, com a habilidade de criar ferramentas, o resto é fácil. Vem felicidade, eu crio uma ferramenta pra lidar com ela, vem sofrimento, eu crio uma ferramenta pra lidar com ele. Aí fica fácil, você fica autossuficiente.

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