Uma reflexão pessoal sobre a morte
Ontem morreu um velho conhecido meu de ciclismo, estava com câncer e mesmo com o tratamento, acabou vindo a falecer. Foi um processo que considero até rápido, porque no começo deste ano ele ainda estava pedalando normalmente com a gente.
E há umas duas semanas um jovem ciclista também morreu de câncer, este rapaz eu não cheguei a conhecer, mas quem o conheceu disse que era uma boa pessoa, um jovem que teria um bom futuro.
O mistério da morte é recorrente no pensamento das pessoas, afinal, certamente é o maior mistério da vida e objeto de temor de praticamente todo mundo. Diferente do conhecimento científico comum e das percepções ordinárias do dia a dia da vida de qualquer pessoa, o que acontece após a morte não é consenso e nem pôde ainda ser objeto direto de estudo científico. Então, é interessante que, talvez o campo religioso seja onde a gente possa encontrar a resposta.
Acredito que todas as religiões possuem, de alguma forma, uma explicação sobre a morte em si e o que ocorre após. Para muitos é um consolo ter esse amparo na religião enquanto se vive a dor da perda, saber que o querido falecido está bem, que está junto de Deus, que está em um local paradisíaco na companhia dos parentes já mortos ou mesmo que está vivo em uma nova vida. Só para citar alguns exemplos.
Mas todas estas ideias sugerem a existência e continuidade de um eu. O corpo era o eu, o espírito que saiu do corpo é o eu, suas memórias e sensações. Tudo o que a pessoa exprime é o eu se manifestado. Este eu simplesmente mudou de forma, abandonou a parte material do eu, o corpo, e passa agora a viver exclusivamente seu lado espiritual. Assim muitos entendem.
Mas no Budismo, seja confiando nas palavras do Buda, seja contemplando diretamente a realidade do corpo, aprendemos que não é assim. Talvez o Budismo seja a única religião que ensina que não há um eu real, seja no corpo, seja em qualquer outro fenômeno físico ou mental. O eu que existe é apenas uma visão distorcida que uma mente ignorante criou. Não tem eu, não tem essência, não tem alma ou espírito, nada nos pertence, tudo é parte da natureza, que também não possui eu. Foi isso o Buda viu quando investigou o corpo e a mente.
A mente ignorante enxerga o corpo com base na posse: “Eu sou o corpo, este corpo é meu, este corpo faz parte do meu eu; Eu sou a mente ... Eu sou o que sinto ... etc”, então quando ocorre a morte ou a eminência dela, nos sentimos tristes e aterrorizados, pois tememos perder o objeto de posse, tememos perder o eu, tememos perder aquilo que achamos que nos pertence, mas a verdade é que nada nos pertence, nada do que sentimos através do corpo é nosso, são apenas fenômenos que se sustentam por um tempo e desaparecem. A mesma verdade se aplica tanto para o corpo, por onde esse fenômenos entram em contato, quanto para a mente, onde eles são experienciados.
Então todo esse apego por causa de uma visão ignorante é a responsável pela dor do luto, por tanto choro, pelo medo de morrer, pelo medo de perder.
É tanta dor que as pessoas, pelo menos no Brasil, têm receio até mesmo de ouvir a palavra morte. É uma coisa que não tem lógica, pois é algo completamente natural, faz parte da vida tanto quanto o anoitecer, digamos. A diferença é que nós não nos apegamos ao anoitecer, nós não projetamos nosso eu no fenômeno anoitecer, não consideramos o anoitecer como nosso, mas consideramos aquele que experiencia o anoitecer, como eu, como meu. Está aí o grande problema, quando ocorrer a morte, o meu eu, ou aquele eu da outra pessoa, não mais poderá contemplar um por do sol.
É tarefa de um praticante budista contemplar a morte, seja monge ou leigo, não importa, a prática só é efetiva quando pensamos na morte sem pudores. Então é até engraçado, contrastante, a religião cristã é cheia de cerimônias quanto a morte. As pessoas estão enlutadas, tristes, falam baixinho umas com as outras nas cerimônias fúnebres, há todo um tom solene e uma mentalidade de perda ao mesmo tempo em que há a fé de que o falecido está em um lugar bom, junto a Deus, mesmo que por acaso ela tenha sido uma má pessoa em vida. Já na prática budista a morte deve ser contemplada todos os dias, ainda que na imaginação. Quantos de nós, pelo menos uma vez na vida, já refletiu sobre a própria morte? Imaginar a cena, as sensações, quantos? Como se sentiram? A mente às vezes não aceita, quer fugir da realidade, pois não quer perder o que experiencia e o que julga como sendo dona, como sendo a si própria.
Mas o que entendemos como nosso eu, é na verdade uma ilusão. Esse eu que construímos é apenas o que o Buda chamou de nama-rupa, ou seja, a união de fenômenos mentais e físicos que surgem a partir da ignorância da própria mente, que cobiça algo e então busca um corpo para prover seu desejo. De forma simplória, este é o processo que mantém funcionando o ciclo de nascimento e morte.
Sendo um pouco mais detalhista, nama-rupa pode ser dividido nos que chamamos de cinco agregados, quatro são mentais e apenas um é físico.
Construímos nosso eu com base neles, achamos que somos estes agregados, mas é apenas uma visão distorcida. Nenhum deles é nosso eu, nenhum deles nos pertence, nenhum deles dura para sempre ou se sustém sozinhos.
A partir daqui podemos ir com calma desmontando nosso corpo e mente para descobrirmos onde está o eu.
Vamos começar pelo corpo, que é o agregado físico, rupa.
Já viram como o corpo é instável? Ele muda toda hora, nunca esteve igual o tempo todo. Está mudando desde a hora em que foi concebido e ruma para a inevitável velhice e morte.
É assolado por doenças, repleto de sujeira, frágil, e com vida curta. É por algo assim que somos apaixonados?
Vamos agora tirar a pele, joguemos nossa pele na nossa frente. O eu está nesse pedaço de pele? Quando nossa pele cai do corpo, é o nosso eu que está caindo e indo embora naquele pedaço de pele morta?
O mesmo vale para o cabelo... Quando cortamos o cabelo, estamos cortando nosso eu? E quando os homens ficam carecas, parte do eu deles foi embora? Pra onde?
O mesmo vale para os pelos do corpo...
... para os dentes ...
... para as unhas ....
Imagina então quando doamos sangue ou até mesmo algum órgão, é o nosso eu que passa a existir no eu da outra pessoa? Como funciona isso? Faz sentido?
E após a morte o corpo apodrece, se desintegra e seus elementos químicos assumem novas formas na natureza e este ciclo impessoal continua.
Nessa rápida contemplação podemos perceber que na matéria bruta do corpo o eu não está. Acabamos de desmontar o corpo e até mesmo deixamos que apodrecesse na cova, e não achamos nada, nem sequer o espírito está lá.
O que vimos além de um amontoado de fenômenos condicionados, um complexo fenômeno físico, químico e biológico? Algum deles pertence a vocês? Vocês são algum deles? O corpo está inerte e podre na sepultura, vocês são o corpo podre? Por que tanto sofrimento por causa disso?
Vamos contemplar agora os agregados mentais, os nama-khandas, são quatro:
Vedana ou sensações: surgem na dependência de um corpo vivo. São as sensações comuns que temos ao longo da vida e que podem ser prazerosas, neutras ou desagradáveis. Podem gerar tanto apego quanto repulsa.
Será se o eu está em vedana? Mas vedana é dependente do contato do estímulo com o corpo, se não tem corpo não tem vedana, mas se o eu, como já vimos, não está no corpo, por que estaria em vedana? Observem alguma sensação que está ocorrendo agora no corpo de vocês. Ela surgiu do nada ou foi a partir de uma causa? Uma dor nas costas pode ter sido má postura. Se você corrigir a má postura e a dor sumir ou enfraquecer, significa que o eu que sentiu essa dor mudou? Ou o eu é a dor? Então o eu mudou também? Se a dor sumir, o eu sumiu?
O próximo agregado é sañña, percepção, rotulagem. É como reconhecemos um objeto ou experiência. Percebemos e nomeamos as experiências com base no que conhecemos e entendemos, mas pode ser enganosa, pois julgamos errado. Se somos sañña, se nosso eu permanente está em sañña, por que nossas percepções mudam a toda hora? Hoje gostamos de algo, mas amanhã já não gostamos mais. Hoje torcemos para um time, amanhã para outro, e às vezes, até por doença, podemos perceber coisas irreais ou que não correspondem com o real, como daltonismo.
Então dá pra notar como sañña não é confiável e muito instável, portanto, não há um eu ali, não dá pra ser nosso eu ainda.
Saṅkhāra é complexo. São nossos pensamentos, emoções, hábitos, intenções e etc.
Estes saṅkhāras também surge com base em algo, precisam deste suporte para surgir e se manter.
Quando pensamos em algo, como um projeto. Imaginamos este projeto, para que serve, como e quando será executado, o objetivo, quando termina, e etc. Ao final, paramos de pensar nisso tudo, encerrando os saṅkhāras relacionados a este projeto. Eles não mais surgirão porque sua base para existência cessou.
Dito isto, nosso eu estava neste saṅkhāra? Nós somos este saṅkhāra? Este saṅkhāra cessou ao fim do projeto, então nosso eu cessou também?
O próximo é viññana, a consciência dos seis sentidos. Dependem do corpo e da mente para surgir.
Os cinco sentidos geram viññana. Audição, olfato, paladar, visão e tato. O sexto sentido é a mente, a consciência dos pensamentos.
Ora, se estes sentidos surgem a partir de um corpo impermanente, é nítido que o eu não está nos sentidos. Alguém aqui está com calor? Se eu ligar o ar condicionado a consciência do calor vai desaparecer, então o eu que sente calor vai desaparecer? Quando o calor voltar, o eu que sente frio desaparece e dá lugar ao eu que sente calor? Que confusão!
Então, parece-me que o eu eterno e imutável também não está em viññana.
Desmontamos o corpo e a mente humana e não descobrimos o eu, vimos que são apenas fenômenos físicos e mentais que surgem e se mantém por que há causas, nunca do nada.
Vimos o corpo em suas diversas partes, e nada do eu...
Vimos a mente e seus mecanismos e o eu também não estava ali...
Mas vimos como é infrutífero o apego por estes agregados. Eles não são nosso eu e sim são base para a o sofrimento fruto do apego.
Então, percebe-se que nada morre, não há nenhum eu eterno experienciando a morte, apenas fenômenos condicionados expressando sua natureza impermanente.
A mente quando se torna sábia quanto a isso, larga o encanto pelo corpo e pela mente, mesmo pelos sublimes estados mentais.
Nenhum motivo para chorar, para se enlutar, apenas para se libertar.
Não digo que devemos simplesmente desprezar os mortos, não é isso; podemos e devemos ser respeitosos, mas também sábios. Mesmo que a visão clara da verdadeira natureza do corpo ainda não tenha surgido no seu coração, gere pensamentos hábeis, cultive um estado mental de qualidade diante da situação. Pode cultivar compaixão, equanimidade, bondade amorosa e até mesmo alegria altruísta ao, por exemplo, ver a família sendo acolhida e consolada.
Praticar os cinco preceitos, ajudar os necessitados, a sangha, os animais abandonados, qualquer ato de bondade é válido. Isso nutre a mente com qualidades nobres, gera paz, torna o coração leve e tranquilo. Torna-se um campo fértil onde os mortos podem colher felicidade; chamamos isso de compartilhar méritos.
Após praticar uma boa ação nós nos sentimos felizes, não é? Então compartilhe essa felicidade com o ente querido que faleceu, com aquele animal cuja morte lhe gerou compaixão. Não há limites para a bondade e o compartilhamento de méritos. A bondade é como uma chama que, ao acender outras, não se reduz; pelo contrário, se multiplica. Certamente, é uma prática que gera frutos melhores do que o simples choro.
Busquem esta sabedoria, pratiquem com diligência, e a mente encontrará paz, em meio à vida, à morte e a tudo o que surge e cessa.
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