Todos amam alguém
Por Ajahn Chandako
Passei meu primeiro vassa em aviões a jato. com um desenvolvimento habitacional sendo visto pela minha janela, cercado por vistas sedutoras no calor e poluição atmosférica da capital da Tailândia. O Venerável Ajahn Piak agora vivia na selva urbana enquanto a crescente Bangkok gradualmente engolia seu minúsculo monastério outrora remoto. Os aviões rugiam e os vizinhos roncavam. Eu lutava com estados mentais. E através de tudo isso Ajahn Piak irradiava. Serenidade. Amor bondade. Ele não era um homem comum.
Um dia, a Sangha teve a oportunidade de testemunhar uma autópsia em um hospital da polícia. Esta prática tradicional de contemplar uma pessoa morta é uma técnica de meditação que permite uma olhada honesta inquirindo o natureza efêmera de nossos corpos e nossa identificação apaixonada com eles. Realizada com sabedoria, a contemplação do cadáver ajuda a reduzir o apego ao corpo, reduzindo um fardo de dukkha e dando origem a alegria. Aceitar profundamente a inevitabilidade da morte nos ajuda a tornar as nossas prioridades claras. Naturalmente, desenvolvemos então uma apreciação pela preciosidade da nossa vida e as oportunidades que ela nos proporciona para cultivarmos o Caminho.
No passeio de carro eu tentei despertar uma séria atitude contemplativa enquanto o motorista tocava rock. Na primeira vez que permaneci com Ajahn Piak, eu tinha quatro ou cinco métodos diferentes de meditação, o resultado de uma mistura de anos de compras espirituais. Uma noite fui consulta-lo e pedir conselhos sobre qual direção seguir. Ele salientou a importância de compreender a verdade sobre o corpo praticando kayagatasati (atenção do corpo) e asubha (meditação sobre as qualidades pouco atraentes do corpo). Ele deu instruções para dissecá-lo mentalmente, reduzindo-o a seus componentes para análise objetiva, e refletindo sobre sua eventual extinção. Essa foi minha primeira tentativa de desenvolver sistematicamente a investigação desse corpo. Eu estava 'entrando' no meu corpo - realmente entrando e foi o suficiente para fundamentalmente desafiar percepções que eu tinha sobre quem eu era.
O carro parou. Seis mantos marrons, quatro monges tailandeses, um jovem noviço e um phra farang (monge ocidental) desfilaram por paredes brancas. Recebidos com o cheiro de formol, entrei na sala de autópsia preparado para visões terríveis e sombrias, e lá estava ela - nosso cadáver, uma mulher de Bangkok de vinte e poucos anos. Recém falecida, sem nenhuma marca em seu corpo e nem sequer estava um pouco azulada ou inchada, ela parecia mais a Bela Adormecida do que o objeto de meditação apodrecendo e anti-Mara que eu esperava. Eu fingi equanimidade. A noviço arregalou os olhos. Eu queria perguntar que sofrimento a levara a se enforcar, mas o médico legista e seu bisturi interromperam. Ele deixou claro que esse sono encantado não era um conto de fadas. Com os monges de pé em arquibancadas, como de torcedores em uma partida de futebol, a dissecação começou. Os cortes iniciais quebraram a percepção da beleza. Mantendo a imagem mental de sua condição original para comparação, o desmantelamento subsequente começou a produzir efeito. Lembrei-me de Siddhartha e de sua preocupação quando seus tentadores [filhas de Mara] não conseguiram amenizar sua sábia tristeza. O que separa os vivos dos mortos? Por que dou importância a esse cadáver que chamo de mim mesmo?
Enquanto isso, a Bela Adormecida tinha uma boa aparência. Eu queria uma olhada mais de perto, então desci das arquibancadas para ficar ao lado dela, minha mente girava entre as emoções de fascínio, repulsa, compaixão e uma paz questionável. Então o cheiro me atingiu. Minha cabeça começou a girar e decidi que era hora de recuar. Quando eu pisei no corredor, minha visão começou a desaparecer, a escuridão gradualmente aumentava, reduzindo a visão para um ponto e, em seguida, extinguindo-a completamente.
"Eu não vou desmaiar!" Determinei. - Seria simplesmente muito embaraçoso para todos os presentes se o pra farang desmaiasse. Eu estava, no entanto, completamente cego. Segurando um fio de consciência com toda a força de vontade que eu poderia reunir, eu podia ouvir os outros preparando-se para sair. Agarrei o manto de alguém para me levar para fora. Do lado de fora, os outros notei que eu parecia tão pálido quanto o cadáver e me pediram pra sentar. Alguns minutos depois a visão voltou.
Ao retornar para o monastério o trabalho era integrar e internalizar a experiência daquele dia. Se eu não fizesse isso, ficaria apenas com um coração perplexo, porém relativamente inalterado pela autópsia. Segui os conselhos de Ajahn Piak para visualizar as diferentes camadas que compõem o meu corpo.
Como eu pareço sem cabelo? (Uma forma fácil de começar). E sem pele? Sem órgãos, tendões ou carne? Gradualmente parte específicas do corpo se destacavam mais claramente do que o resto: um conjunto completo de dentes sem lábios, uma costela e o pelo nas costas da minha mão. Concentrando-me em um único cabelo, simplesmente vendo sem conceituar, revelou a fisicalidade e mentalidade como processos interdependentes, mas distintamente separados, posteriormente desvendando a errônea noção assumida de um eu inerente. O mundo parecia virado de cabeça para baixo. Surgiu um senso de urgência espiritual, bem como uma seriedade que achei necessário equilibrar com o desenvolvimento regular de amor bondade.
O Buda considerou a meditação nas partes do corpo de suma importância e é incluída como parte da cerimônia de ordenação para bhikkhus. Estas práticas asubha não são uma tentativa de nos convencermos que tudo é feio, mas para equilibrar a mente para ver as coisas como elas realmente são. O mundo não é intrinsecamente bonito nem feio, mas problemas surgem quando projeções de atratividade em pessoas, objetos e ideas dão origem a desejo e dukkha.
Ao expor a primeira Nobre Verdade, o Buda de modo algum negou que o prazer pode ser encontrado na gratificação sensual através do corpo. Ele, no entanto, salientou que é temporário, carrega uma semente de dukkha, e é inferior à bem-aventurança dos jhanas e a paz de Nibbana.
No desenvolvimento de kayagatasati, a capacidade de concentrar a mente é essencial para ir além do superficial, e a contemplação do corpo por sua vez condiciona a mente a convergir em um só objeto. Mesmo que alguém tenha visto a natureza insatisfatória do prazer sensual, desde que não se tenha ainda experimentado a maior felicidade de jhana não se pode esperar que a pessoa será capaz de abandonar completamente o apego àqueles prazeres sensuais.
Na tradição da floresta tailandesa, o kayagatasati é o principal pilar para o desenvolvimento do insight. O professor de Ajahn Chah, Ajahn Mun, recomendou: "Em sua investigação, nunca permita que a mente abandone o corpo para qualquer outra coisa.
Você pode examinar a falta de atratividade do corpo, vê-lo como composto de elementos, examiná-lo para vê-lo como agregados ou por meio das três características (impermanência, sofrimento e não-eu). Quando qualquer um desses aspectos for plena e lucidamente visto pelo coração, todas as outras coisas exteriores se manifestarão claramente também."
Foi apenas Ajahn Mun quem conseguiu convencer seu eminente discípulo Ajahn Tate para investigar o corpo. Até o seu 12º vassa, Ajahn Tate, pensava que uma vez que as sutilezas da mente foram dominadas, por que voltar para investigar um objeto grosseiro como o corpo. No entanto, foi precisamente devido a sua aceitação dessa prática que ele teve uma profunda realização de Dhamma.
Mais tarde tive a oportunidade de falar com Ajahn Piak, e ele explicou detalhadamente as meditações no corpo.
"Primeiro, tenha a mente descansada, focada. Essa é uma primeira etapa necessária. Assim que ela começa a se mover, escolha um objeto de investigação, qualquer aspecto da kayagatasati que você usa regularmente será correto.
Suponha que você investigue o elemento terra (solidez) no corpo. Se a mente estiver pacífica com força suficiente, parecerá que o corpo se dispersa, se dissolve e desaparece completamente. Será anatta (não-eu).Vazio.
Investigue qualquer parte do corpo que você escolher. Se você não pode investigar todas as partes do corpo, simplesmente foque em uma delas, mas faça com que ela atinja o ponto de anatta. Em seguida, remonte-o; para frente e para trás, repetidamente, até que seja visto muito claramente: este corpo é apenas uma coleção de partes; é impermanente; surge, existe e desaparece".
Perguntei: Você recomenda usar uma parte do corpo, o esqueleto, por exemplo, como um objeto fixo de samadhi?
"Sim, certamente pode fazer isso. Se a princípio você não consegue visualizar seus ossos, pode ser necessário ir olhar um esqueleto. Lembre-se de como ele parece. Então imagine-se como um esqueleto. Tire o esqueleto de você mesmo então se coloque no esqueleto. Com habilidade crescente, cada vez que você estiver consciente de si mesmo, você pode fazer o esqueleto como nimitta (neste contexto), imagens visuais do corpo, criadas ou surgidas espontaneamente, ou realmente vendo dentro do corpo com o olho da mente, sabendo que "você" é ossos. Então, quando o nimitta estiver claro e estável, divida-o e dissolva-o em pó e anatta. Se você usar isso como seu principal modo de investigação, cada pessoa que você encontrar ou lembrar, deve vê-la como um esqueleto. Quando estiver dominando, isso trará leveza e felicidade. Esta é a maneira que eu pratiquei quando era um jovem monge".
"Deve-se investigar da mesma maneira a cada vez ou seguir onde quer que a mente se incline?
"Qualquer parte do corpo é adequada. Se a mente for para um ponto específico, então contemple lá. Se pensamentos perturbadores começarem a aumentar, deixe a mente descansar retornando à meditação de concentração. Depois de ter recuperado a força, continue com a contemplação. Qualquer que seja a parte, um dente, por exemplo, torne esse nimitta tão grande ou tão pequeno quanto possível.
Eu costumava pegar um minúsculo cabelo solto e torná-lo mais e mais longo até preencher todo o espaço. Então eu o diminuiria. Era muito divertido e eu fazia isso por horas. Esse tipo de diversão é bastante útil porque você está brincando com os objetos de meditação do cabelo, pele, ossos etc. o tempo todo. É importante desfrutar de meditação, ou então a pessoa inevitavelmente começará a procurar por diversão em outros lugares."
Nos anos seguintes, a imagem mental da Bela Adormecida sem nada encantador permanecia vívida e clara. E ela ensinou: quando a dança acaba, a última música chega ao fim e nossa máscara é gentilmente retirada, o que há por trás da nossa fachada? O beijo da lâmina do legista nos convida a despertar.
Bacana. Confesso que tento perceber esse aspecto com muita cautela, pra não cair na depressão. Também tenho esse lado de ficar investigando as sutilezas da mente. Talvez o corpo precise de atenção. Obrigado.
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