Guia de estudo do Dhammacakkappavattana Sutta

Estou participando no Skype de um grupo de estudo de suttas e o primeiro sutta que debateremos será o Dhammacakkapavattana Sutta - Colocando a Roda do Dhamma em Movimento. 
Por conta disso eu criei um pequeno guia de estudo deste sutta, explicando seus principais aspectos. 
Não tive a intenção de esmiuçar cada detalhe do texto e nem de apresentar uma interpretação absoluta e definitiva, e sim de tentar explanar o sutta da melhor forma possível, utilizando como base o meu próprio entendimento e criteriosas pesquisas na Internet. 


Guia  de estudo do Dhammacakkappavattana Sutta
Samyutta Nikaya LVI.11

- É o primeiro discurso dado pelo Buda após a Iluminação.
- Seu foco é as Quatro Nobres Verdades.
- O título do sutta pode ser traduzido como: Cakka (roda), Dhammacakka (roda do Dhamma), pavattana (girar, colocar em movimento). Logo:  Colocando a roda do Dhamma em movimento.

Conteúdo:

- os dois extremos que devem ser evitados
- o Caminho do Meio: o Nobre Caminho Óctuplo
- as Quatro Nobres Verdades
- os doze insights
- a proclamação do fim do nascimento
- o surgimento do olho do Dhamma em Kondañña
- a exclamação dos devas
- a reação do Buda ao perceber que Kondañña compreendeu o ensinamento

Contexto

O Buda alcançou a Iluminação sob a árvore Bodhi nas margens do Rio Nerañjarā. Lá ele permaneceu em silêncio por muitos dias e sentia pouco desejo de ensinar. Ao ser convencido pelo brahma Sahampati para que ensinasse o Dhamma, o Buda pensou em ensinar primeiramente seus antigos mestres, Alara Kalama e Uddaka Ramaputta, mas foi informado pelos devas de que ambos haviam morrido. Então o Buda considerou ensinar o grupo de cinco bhikkhus que o acompanharam nas práticas ascéticas. Com o olho divino, ele viu que estes bhikkhus estavam vivendo no Parque do Gamo, em Isipatana.
Logo em seguida o Buda viajou a pé 245 km de Bodhgaya para Isipatana, que na época era uma pequena cidade próxima de Benares.  

Lá reencontrou seus antigos companheiros. Eles primeiramente desdenharam do Buda, achando que ele havia relaxado sua prática. Mas ao verem seu semblante pacífico, mudaram de ideia e o trataram com respeito, mas usaram o termo “amigo”, o que fez o Buda alertá-los para que não o chamassem mais pelo nome e nem de amigo, pois ele agora era o Tathagata perfeitamente iluminado e que o Imortal havia sido alcançado.    
A partir dai o Buda ensinou, dentre outras coisas, as Quatro Nobres Verdades como relata o sutta.

Uma representação do Buda proferindo o discurso aos cinco bhikkhus

O parque do Gamo nos dias atuais

Início

O sutta inicia com a usual frase: Assim ouvi. Em seguida descreve o local em que a história ocorreu e quem era a audiência do discurso.
Segundo o comentário no Mahāvagga Saṃyutta, o discurso começou no fim da tarde. O sol estava se pondo e a lua começava a aparecer ao leste.

O discurso deve ter durado muitas horas, sendo o sutta apenas um resumo. 
O Buda começa explicando os dois extremos que devem ser evitados por aqueles que seguem a vida santa. Eles são: O extremo dos prazeres sensuais (kāmasukhallikānuyogo) e o extremo das práticas ascéticas (attakilamathānuyogo).
Ambos caminhos são dukkha e aqueles que vivem neles são anariyas. O Buda classificou estas coisas como improdutivas, que não trazem benefício, etc.
Importante destacar que ele classificou o extremo dos prazeres sensuais como baixos, vulgares, grosseiros, ignóbeis e que não trazem benefício, mas não utilizou os termos baixos, vulgares, grosseiros para o extremo da prática ascética, limitando-se a chamá-la de dolorosa, ignóbil e que não traz benefício.
A maioria das pessoas vive em kāmasukhallikānuyogo, mesmo que não seja exatamente no extremo, mas quase todo mundo vive em função da busca incessante por prazer sensual.
Em seguida o Buda descreve o Caminho do Meio, para o qual ele despertou e que conduz à Iluminação. Logo após, ele expõe as Quatro Nobres Verdades.

As Quatro Nobres Verdades

1 – A existência do sofrimento no saṁsāra. Jāti’pi dukkhā, jarā’pi dukkhā…A verdade do sofrimento deve ser entendida.
2 – A causa do sofrimento (dukkha samudhaya) : Desejo (tanha). A tendência ao apego à várias coisas causam bhava (um novo processo de vir-a-ser) ao valorizar tais coisas e dar prioridade a elas. Estas coisas são: prazeres sensuais (kama tanha), desejo por existir (bhava tanha) e desejo por não existir (vibahava tanha). A causa de dukkha deve ser abandonada.
3 – A verdade de como eliminar estas causas: remover tanha totalmente (yeva taṇhāya asesa-virāga-nirodho), ao dar sem esperar nada em troca (cago), cortando todas as amarras (paṭinissaggo), tornando-se desenredado (mutti), e removendo todos os apegos (anālayo). Esta Nobre Verdade do fim do sofrimento deve ser realizada.
4 – O método que leva ao fim do sofrimento, o Nobre Caminho Óctuplo. Esta Nobre Verdade deve ser desenvolvida.

Elas possuem três fases e doze aspectos (ou insights):

Sacca-ñāṇa – conhecer a natureza da verdade (conhecer, ver, refletir)
Kicca-ñāṇa – saber o que precisa ser feito (prática, motivação, experiência direta).
Kata-ñāṇa – fazer o que precisa ser feito (entendimento, sabedoria)

1 – Existe o sofrimento; a verdade do sofrimento deve ser entendida; a verdade do sofrimento foi entendida.
2 – A causa do sofrimento é o desejo; a causa do sofrimento deve ser abandonada; a causa do sofrimento foi abandonada.
3 – A cura para o sofrimento é eliminar o desejo; esta Verdade deve ser realizada; esta verdade foi realizada.
4 – O caminho para o fim do sofrimento; este Caminho deve ser desenvolvido; o Caminho foi desenvolvido.

 Os doze aspectos são a somatória das três fases de cada Nobre Verdade.

O Nobre Caminho Óctuplo

1 – Visão correta (sammā dithi) –  entendimento das Quatro Nobres Verdades e da real natureza do mundo (anicca, dukkha e anatta)
2 – Intenção correta (sammā saṅkappo) – renúncia, não crueldade, não má vontade.
3 – Fala correta (sammā vācā) – Abster-se de mentiras, de fala maliciosa, grosseira, severa e inútil.
4 – Ação correta (sammā kammanto) – abster-se de matar seres vivos, de tomar o que não lhe foi dado e apego a prazeres sensuais.
5 – Modo de vida correto (sammā ājīvo) – viver de modo que não crie sofrimento físico ou mental para si e para os outros.   
6 – Esforço correto (sammā vāyāmo) – é o esforço para que não surjam estados ruins e prejudiciais; esforço para abandonar estados ruins e prejudiciais que já surgiram; esforço para que surjam estados benéficos que ainda não surgiram.
7 – Atenção correta (sammā sati) – contemplação com atenção plena dos agregados sem cair no extremo do apego nem no extremo da repulsa.
8 – Concentração correta (sammā samādhi) – É a mente em jhāna.

A proclamação do fim do renascimento

“Enquanto, bhikkhus, meu conhecimento e visão dessas Quatro Nobres Verdades como na verdade elas são, nas suas três fases e doze aspectos, não estava completamente purificado desse modo, não reivindiquei ter despertado para a insuperável perfeita iluminação neste mundo com os seus devas, maras e brahmas, esta população com seus contemplativos e brâmanes, seus príncipes e povo. Mas quando meu conhecimento e visão dessas Quatro Nobres Verdades como na verdade elas são, nas suas três fases e doze aspectos, estava completamente purificado desse modo, reivindiquei ter despertado para a insuperável perfeita iluminação neste mundo com os seus devas, maras e brahmas, esta população com seus contemplativos e brâmanes, seus príncipes e povo. O conhecimento e visão surgiram em mim: ‘A libertação da minha mente é inabalável. Este é o meu último nascimento. Não há mais vir a ser a nenhum estado.’

É interessante destacar a frase recorrente no sutta: com relação a coisas não ouvidas antes... (pubbe ananussutesu dhammesu)

Quando o Buda se iluminou, ao compreender este Dhamma que até então era desconhecido do mundo, cinco tipos de conhecimento surgiram naquele momento: cakkhu, ñāna, pañña, vijjā, e aloka.
Cakkhu é o olho do Dhamma, ou seja, a habilidade de ver a natureza deste mundo.
Ñāna é conhecimento.
Pañña é sabedoria.
Vijjā é o entendimento da verdade última sobre o mundo. Onde todos os aspectos se revelam.
Aloka tem vários significados. Pode significar a total extinção de alguém do mundo ao alcançar a Iluminação.

Cakkhu é o tipo de conhecimento adquirido por uma pessoa ao torna-se Sotapanna, portanto, podemos afirmar que o Buda na noite de sua iluminação percorreu todo o Ariya Magga em questão de horas, tornando-se um Arahant ao amanhecer. 
Cabe enfatizar a forma clara com que o Buda afirma que para ele não há mais vir a ser a nenhum estado (natthidāni punabbhavo`ti), portanto, todo o trabalho dele está acabado. Nenhum nascimento de qualquer tipo ocorrerá, pois a energia cármica que gera bhava foi extinta. Some a isso o conhecimento de aloka, que o exclui de todos os mundos possíveis do saṁsāra. Isso refuta qualquer ideia de que o Buda está em outro mundo “expandindo sua consciência”, “abençoando os fiéis”, “que vai reencarnar” e etc.

O surgimento do olho do Dhamma em Kondañña

E enquanto o Abençoado discursava, o olho imaculado do Dhamma surgiu no Venerável Kondañña: ‘Tudo que está sujeito ao surgimento está sujeito à cessação.’
“..āyasmato Koṇḍaññassa virajan vītamalan dhammacakkhun udapādiyan kiñci samudayadhamman sabban tan nirodhadhamman’ti”.

O Venerável Kondañña ao ouvir o discurso alcançou o estágio de Sotapanna, pois entendeu que todos os fenômenos que surgem tendem a desaparecer como sendo algo inevitável no mundo. Com isso surgiu nele o olho do Dhamma (dhammacakkhun udapādi).
A outra parte da frase, “yan kiñci samudayadhamman sabban tan nirodhadhamman’ti”, fala o que o olho do Dhamma enxerga: “Que qualquer coisa que surja (samudaya dhamma) nos mundos do saṁsāra vai desaparecer (nirodha dhamma).
Quando um Sotapanna adquire o segundo conhecimento (Ñānan udapadi), é quando ele(a) realmente começa a ver a natureza de anicca do mundo com um pouco mais de profundidade e abandona alguns prazeres sensuais com o uso do olho do Dhamma. O processo continua com pañña udapadi que é quando a pessoa vê de fato os perigos e efeitos maléficos de qualquer prazer sensual e consegue abandoná-los, alcançando o estágio de Anāgāmi.

A exclamação dos devas

É notória no sutta a descrição da imensidão do universo com seus mais diversos mundos.
O sutta mostra que os devas estavam cientes do discurso do Buda e que ao finalizá-lo, os devas da Terra exclamaram palavras de júbilo: “Em Benares, no Parque do Gamo, em Isipatana, esta insuperável roda do Dhamma foi colocada em movimento pelo Abençoado, e não poderá ser detida por nenhum brâmane ou contemplativo, ou deva, ou Mara, ou Brahma, ou qualquer um no mundo.” 

Estas palavras foram sendo ouvidas sucessivamente em cada paraíso, chegando até aos distantes mundos de Brahma.
O texto relata que todo este sistema cósmico contendo dez mil mundos tremeu, estremeceu e se abalou e uma intensa, imensurável e gloriosa luminosidade surgiu no mundo, ultrapassando a divina majestade dos devas.
Deve ter sido um tremendo evento cósmico!
Mas somente cinco humanos ouviram o discurso. Os seres dos reinos inferiores não são capazes de ouvir o Dhamma, bem como os brahmas dos reinos sem forma. Ou seja, seres de oito mundos não puderam fazer parte deste acontecimento.

A reação do Buda

O sutta termina com a reação um tanto espantada e ao mesmo tempo contente do Buda com a realização do Venerável Kondañña.

Koṇḍañña de fato compreendeu! Koṇḍañña de fato compreendeu!”
Então O Venerável Kondañña adquiriu o nome Añña-Kondañña – Kondañña aquele que Compreendeu.”


Prólogo

Embora o sutta termine aqui, há um texto no Vinaya que relata a continuação do episódio e como surgiu a Sangha budista.

Após o Abençoado fazer o contente enunciado, o Venerável Koṇḍañña fez o seguinte pedido: “Venerável Senhor, que eu passe a seguir a vida santa como um noviço na presença do Buda; que eu receba a admissão na vida santa sob a tutela do Abençoado.”

O Venerável Koṇḍañña certamente tinha crenças religiosas no passado. Os demais bhikkhus ouviram o mesmo discurso que Koṇḍañña e o sutta não relata nada de extraordinário a respeito deles. Por que Koṇḍañña é especial? O que o fez abandonar suas crenças e passar a ter plena confiança e fé no Buda?
Koṇḍañña tinha suficiente pāramī e alcançou o estágio de Sotapanna por ter visto o Dhamma em seu coração, entendendo o nirodha sacca das Quatro Nobres Verdades. Sendo assim, percebeu o constante surgir e cessar dos fenômenos condicionados como sendo sofrimento. Percebeu que o desejo era a causa do sofrimento e por fim viu que este entendimento era o caminho que o levaria para Nibbāna. Isso o fez ter total fé no Buda, deixando de lado suas crenças anteriores.
O Buda aceitou a entrada de Koṇḍañña na Sangha com as seguintes palavras: “Venha, Bhikkhu. O Dhamma é bem exposto pelo Abençoado. Venha praticar a vida santa com sīla, samādhi e pañña para o fim do sofrimento.”

O Buda, Koṇḍañña e os outros quatro bhikkhus permaneceram juntos na floresta. Sendo instruídos pelo Buda, foram aos poucos alcançando os sucessivos estágios do Caminho, conforme é relatado nos suttas. Todos os cinco bhikkhus alcançaram o estágio de Arahant quando o Buda proferiu o Anatta Lakkhaṇa Sutta. 

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