Guia de estudo do Mulapariyaya Sutta

Majjhima Nikaya 1
Mulapariyaya Sutta
A Raiz de Todas as Coisas
Guia de estudo


Introdução

Este talvez seja um dos mais difíceis e profundos suttas de todo o Cânone em Páli.
O discurso analisa o processo de pensamento de quatro diferentes tipos de pessoas e mostra que o surgimento de dukkha é devido a um intricado processo que começa com a percepção e que só pode ser finalizado através do insight da verdadeira natureza da realidade, que ocorre após o abandono de visões distorcidas sobre os objetos que a mente cogniza.

Conteúdo


Neste primeiro sutta do Majjhima Nikaya o Buda está sentado sob a sombra de uma árvore sala real em companhia de um grande número de bhikkhus que eram brâmanes na vida leiga. A motivação do discurso foi o Buda ter percebido a presunção destes bhikkhus por terem grande maestria intelectual no Dhamma-Vinaya mas ainda estarem apegados às ideias brâmanes.
De acordo com Bhikkhu Thanissaro, estes monges pertenciam mais precisamente a uma escola filosófica chamada Samkhya, que ao mesmo tempo em que compara a sua filosofia, põe-se a criticá-la. 
É dito que ela foi fundada por um filósofo chamado Uddakala, que postulou haver uma “raíz princípio” (mula-Prakti) em todas as coisas e que era responsável pelo surgimento dos seres.
O Buda então começa o ensinamento indicando que explicará a raíz de todas as coisas ligadas à construção da identidade, algo que engloba os cinco agregados1.
Os frutos do Caminho e Nibbāna estão excluídos desta construção de identidade.
Logo em seguida o Abençoado expõe que existem quatro tipos de pessoas: Puthujjana, Sekha, Arahant e o Tathagata, e como cada um deles lida com a raíz do sofrimento, ou seja, o desejo (tanha) que surge a partir da ignorância (avijjā).

Nota 1: Os cinco agregados (khandas) que compõem um ser humano – forma (rūpa), sensações (vedanā), percepções (sañña), formações mentais (saṇkhāra) e consciência (viññana).

Assutavā Puthujjana

É a pessoa comum sem instrução que não respeita os nobres e que tampouco possui qualquer realização espiritual. É uma pessoa vulgar, ignorante sobre o Dhamma.

O Buda explica como este tipo de pessoa lida com as suas experiências.

3. “Aqui, bhikkhus, uma pessoa comum sem instrução que não respeita os nobres, que não é proficiente nem treinada no Dhamma deles, que não respeita os homens verdadeiros, que não é proficiente nem treinada no Dhamma deles, percebe a terra como terra. Tendo percebido a terra como terra, ela concebe [a si mesma como] terra, ela concebe [a si mesma] na terra, ela concebe [a si mesma separada] da terra, ela concebe a terra como ‘minha’, ela se delicia com a terra. Por que isso? Porque ela não a compreendeu completamente, eu digo.

O discurso segue listando todas as coisas que os quatro tipos de pessoas percebem, concebem e se deliciam. Estes objetos de pensamento são chamados de “Vinte e quatro bases de cognição (vatthus) e podem ser tanto grosseiros quanto sútis. Eles são:

- Os quatro elementos – terra, fogo, água e ar. Ou seja, a matéria (rūpa).

- Os seres nos trinta e um mundos de existência.

- Os mundos imateriais do “espaço infinito”, “consciência infinita”, “nada” e “nem percepção nem não-percepção”.

- Quatro classes de dados sensoriais – o que é visto, ouvido, sentido (cheiro, sabor e tato) e reconhecido.

- A abstrata categoria de diversidade, unidade e totalidade, ou “O Todo”.

- Nibbāna, a realização suprema.

Estas bases serão explicadas mais detalhadamente no decorrer do texto.

E como é que uma pessoa vulgar enxerga o mundo?

Em resumo, ela vê as vinte e quatro bases de cognição com a visão distorcida, sem sabedoria. Ela não enxerga a verdadeira natureza destas bases, ou seja, ela a partir da sua ignorância cria uma ideia do objeto. Esta ideia, obviamente errônea, será considerada como verdade. A pessoa então poderá apegar-se a ele, sentir aversão ou permanecer indiferente, criando assim um eu com opiniões, conceitos, gostos e desgostos, amores e ódios, com esta ou aquela qualidade e assim por diante. Além disso, pode ocorrer a ideia de que a base possui um eu, que ela seja uma entidade com uma essência bem definida e imutável.
Estas ideias distorcidas são classificadas em quatro tipos e ocorrem em três níveis diferentes.

Quatro visões distorcidas: ver o feio como belo, o desagradável como agradável, o impermanente como permanente e o desprovido de eu como provido de eu.

Três níveis: percepções, pensamento e visão.

A distorção na percepção ocorre quando o objeto é notado sem maiores detalhes. Se o objeto é pensando sem um maior detalhamento, então surge a distorção no pensamento. Por fim, se há a convicção de que tudo o que foi percebido e pensando é verdadeiro, então surge a distorção na visão. 

Um exemplo prático desta construção errônea seria uma pessoa estar na floresta, ver um cipó no chão e achar que é uma cobra.
A tendência da pessoa que tem medo de cobras é se assustar e fugir.
Se a pessoa não tem medo de cobra, sua mente simplesmente fabricará a cognição de ter visto uma cobra e não reagirá ao visto, seguindo seu caminho sem prestar maior atenção ao objeto.
Mas se a pessoa se interessa por cobras, a atenção pelo objeto surgirá e ela observará a “cobra” com mais detalhes, para só então perceber que a tal cobra era na verdade um cipó e que a cobra só existia na sua mente, que fabricou a ideia a partir de uma visão errônea.

As reações ao objeto cognitivo estão sujeitas às contaminações (kilesas) existentes na citta, como por exemplo, luxúria, ódio, inveja, ciúme, cobiça, apego e etc.
É um processo complexo e tão rápido que parece ser automático, natural e verdadeiro. Uma pessoa vulgar é incapaz de perceber que é a sua mente que fabricou todos estes conceitos, julgamentos, convicções e etc usando bases distorcidas. É isso o que o Buda quis dizer por “perceber a terra como terra”.
Após perceber a “terra como terra”, a próxima fase é “conceber” o objeto.

“(...) ela concebe [a si mesma] na terra, ela concebe [a si mesma separada] da terra, ela concebe a terra como ‘minha’”

A palavra conceber (maṣṣanā) vem de man (pensar), mas não é simplesmente pensamento discursivo (vitakka).

Maṣṣanā é um tipo de pensamento diferente, que sempre será inábil e baseado em ideia errônea. Maṣṣanā é um pensamento distorcido, criado a partir de alguma contaminação dominante no momento. O objeto pelo o que ele é de verdade não é considerado, e sim a ideia que as contaminações formaram sobre ele.
Isso gera um ego, uma ideia de posse e controle sobre as experiências, sensações, percepções e etc. É como se houvesse uma entidade experenciando estas coisas e assim o eu é fabricado.
Isso é demonstrado na continuação da frase: ela concebe [a si mesma como] terra, ela concebe [a si mesma] na terra, ela concebe [a si mesma separada] da terra, ela concebe a terra como ‘minha’.

Agora que a mente fabricou um eu para todo este processo, o puthujjana passa a especular sobre o seu destino. Normalmente é pensando na vida eterna após a morte ou na aniquilação total, a destruição deste eu após a morte.
Seja qualquer a escolha, o puthujjana está destinado a especular sobre como ocorrerá a perpetuação ou aniquilação do eu. Isso o impedirá de obter um insight sobre a real natureza da existência e o manterá atado ao ciclo de nascimento e morte.
O ato de conceber é motivado por três fatores mentais: cobiça, conceito e visão. Sob a influência da cobiça o eu adquire apego e desejo. Sob a influência do conceito surgem julgamentos e comparações, onde classificamos a nós mesmos em relação aos outros como superiores, inferiores ou iguais. E sob a influência das visões, o eu passa a viver pelas suas visões, dogmas, princípios e especulações, todas relacionadas a natureza deste eu e ao mundo em que vive.
No exemplo do sutta, o Buda diz que o eu do puthujjana cria um relacionamento dele com o objeto de cognição (terra), surgindo uma identificação e conceitualização com este objeto.
O resultado disso tudo sempre será sofrimento, pois não há como surgir felicidade duradoura a partir de visões errôneas.

E em seguida: “(...) ela se delicia com a terra.”

É importante destacar a palavra “se delicia”, pois isso é gerado pela cobiça, que é responsável não somente por percepções distorcidas dos objetos como prazerosos e atrativos, ou pela concepção das coisas como “minhas” e a vontade de possuí-las. É responsável também pelo processo mental que faz com que nos deliciemos em objetos e tentemos usá-los para o prazer que imaginamos que eles podem fornecer.
Este último exemplo é de fundamental importância no ensino Budista, porque é o insaciável desejo por prazer (kama tanha) é um dos combustíveis que movimenta a roda da vida. Quando a mente encontra satisfação no objeto de cognição ela anseia por uma constante repetição do prazer fornecido pelo objeto. Quando aquela temporária satisfação enfraquece e surge o desejo, a busca por mais prazer começa novamente. Considerando que a cobiça não pode ser extinta simplesmente fazendo suas vontades, o fim da vida e dissolução do corpo não conduz ao fim deste ciclo vicioso, mas sim a uma nova oportunidade da cobiça de renovar sua busca por prazer em uma nova forma de vida, a herdeira do antigo fluxo de consciência em que ela habitava. Assim, podemos concluir que ter deleite por um objeto cognitivo é o que conduz os seres a novas existências, perpetuando o sofrimento. No final do sutta, o Buda declara que o deleite é a raiz do sofrimento. 

Para finalizar a frase: “Por que isso? Porque ela não a compreendeu completamente, eu digo.”

Esta é a razão por detrás dos pensamentos deludidos do puthujjana sobre conceber e ter deleite.

Entender completamente um fenômenos significa entendê-lo de acordo com três tipos de entendimento mencionados no Comentário: compreensão completa através do conhecimento, compreensão completa através da investigação e a compreensão completa através do abandono.
Elas surgem em estágios sucessivos. No primeiro estágio da compreensão completa através do conhecimento, o objeto grosseiro é analisado através dos seus “dhammas” constituintes, e cada dhamma é isolado de acordo com suas características, funções, forma de manifestação e causas. Este mecanismo desmonta a noção de que há uma essência nos fenômenos e mostra um mundo de coisas feitas de componentes impessoais temporariamente aglutinados através de uma cadeia de condições. No segundo estágio, na compreensão completa através da investigação, os dhammas resultantes da análise acima são investigados em termos de três características gerais: impermanência, sofrimento e não-eu; desse modo a tendência de perceber as coisas como permanentes, prazerosas e com um eu é reprimida, e através do insight surge a visão cristalina da real natureza dos fenômenos. Por fim, o terceiro estágio, o desejo e luxúria pelos objetos cognitivos são removidos pela compreensão completa através do abandono2.

Nota 2: Informações práticas sobre o tema podem ser lidas no relato de Ajahn Anan que está no final do documento.

Uma vez que a ausência destes três tipos de compreensão completa é a causa básica por trás das percepções e concepções distorcidas e do deleite, o Buda infere que o modo de eliminar estas cognições distorcidas é o desenvolvimento da sabedoria – tanto a mundana, cujo insight leva ao entendimento da natureza condicionada e desprovida de um eu de todos os fenômenos, quanto a supramundana, que implica no entendimento das Quatro Nobres Verdades e conduz a Nibbāna.

As Vinte e Quatro Bases

O sutta segue o mesmo padrão expositório para todas as Bases, iniciando na percepção distorcida através do conceito e deleite até a falta de compreensão completa. Iniciando pelo elemento terra e finalizando em Nibbāna.
Explicar cada detalhe destes aspectos vai muito além do escopo proposto por este guia de estudo, entretanto, podemos levantar alguns pontos para discussão.
A conceitualização do puthujjana sobre os quatro elementos pode ser entendida como uma tentativa dele de situar-se em relação ao mundo material. Motivado pelo ignorância para interpretar os fenômenos materiais de acordo com as inclinações egóicas de sua consciência, ele tenderá a conceber as formas materiais de uma maneira materialística, como elas sendo o seu eu, ou de uma maneira espiritualista, como um veículo, um instrumento físico. 
O conceito das bases dos “seres” até a base da “nem percepção nem não-percepção” expressa a interpretação da relação dos puthujjana com os demais seres vivos. De particular interesse aqui são as conceitualizações de Brahmā e Pajāpati, duas representações indianas do deus criador, embora o comentarista afirme que Pajāpati é Mara. Já que no sutta estes deuses são representados como pessoas distintas, o puthujjana não se identifica com eles diretamente, mas imaginará a si mesmo como estando no Divino ou como vindo do Divino. Os conceitos dos quatro planos imateriais pode ser entendido como construções de um eu a partir das realizações meditativas correspondentes, levando a considerar um eu transcendental que tudo permeia (espaço infinito), que tudo conhece (consciência infinita), indefinido de forma positiva (base do nada) e indefinido tanto positivamente quanto negativamente (nem percepção nem não-percepção).
O próximo conjunto de bases classifica os dados cognitivos em visto, ouvido, sentido e conscientizado como sendo apropriados pelo puthujjana, ou seja, ele identifica estas coisas como “meu” e “eu”.
As bases da diversidade, unidade e o todo são objetos de visões que envolvem alta abstração filosófica. Ênfase nos diferentes aspectos da experiência no senso ordinário de percepção leva a uma ontologia pluralista que exalta a supremacia da diversidade e multiplicidade. A ênfase no aspecto unificador da absorção meditativa leva a uma ontologia monística, glorificando a unidade. A ideia de totalidade, surge tanto por experiência meditativa quanto por postulados intelectuais. Leva a uma conceitualização panteística ou monística. Panteística porque assume que o divino está em tudo, que esta partícula essencial é toda-penetrante, mas é monística porque ao mesmo tempo considera que há um eu neste divino.
A última base, Nibbāna, significa que para o puthujjana este é o objetivo máximo ou bem supremo. O Comentário explica esta visão como cinco formas de “nibbāna aqui e agora.” - Nibbāna identificado com o gozo pleno dos prazeres sensuais ou com os quatro jhānas. Desfrutando desse estado, ou ansiando por ele, ele o concebe com base no desejo. Orgulhando-se por tê-lo alcançado, ele o concebe com base na presunção. Considerando que esse Nibbāna imaginário é permanente, etc., ele o concebe com base em idéias.
Ainda assim, mesmo imaginando Nibbāna, o puthujjana incorpora um eu a esta ideia.


Sekkha

27. “Bhikkhus, um bhikkhu que se encontra no treinamento superior, cuja mente ainda não alcançou o objetivo, e que ainda aspira pela segurança suprema contra o cativeiro, conhece diretamente a terra como terra. Conhecendo diretamente a terra como terra, ele não deve conceber [a si mesmo como] terra, ele não deve conceber [a si mesmo] na terra, ele não deve conceber [a si mesmo separado] da terra, ele não deve conceber a terra como ‘meu,’ ele não deve se deliciar com a terra. Por que isso? Para que ele possa compreendê-la completamente, eu digo.

O discípulo no treinamento superior. Alguém que alcançou pelo menos o estágio de Sotapanna mas ainda não é um Arahant.
É uma pessoa que saiu da esfera de pessoas comuns e adentrou a esfera dos Nobres.
Um Arahant não é mais um sekkha, e sim um asekha, porque já terminou o aprendizado.
O Sotapanna é alguém que enxergou o Dhamma e eliminou os três primeiros grilhões (são dez ao todo) – visão de um eu, dúvida cética e apego a preceitos e rituais.
Renascerá somente entre devas e humanos por no máximo sete vezes e ao final alcançará Nibbāna. O sakadāgāmi, ao desenvolver sua sabedoria, atenua a luxúria, raiva e delusão, e retornará a este mundo só mais uma vez, quando alcançará Nibbāna. E um Anāgāmi eliminou todos os grilhões de sensualidade e aversão, libertando-se dos cinco grilhões mais grosseiros e assegurou um renascimento nas Moradas Puras, onde realizará Nibbāna. Todos estes indivíduos ainda estão sujeitos a cinco sutis grilhões – desejo por uma existência no mundo da forma, desejo por existência no mundo sem forma, presunção ou orgulho, inquietação e por fim, ignorância – e portanto, ainda têm trabalho a ser feito, mas todos possuem a capacidade de chegar ao fim do Caminho. Eles jamais reverterão para o estado mundano.
Em contraste com o puthujjana, que “percebe a terra como terra”, o discípulo em treinamento superior “conhece diretamente a terra como terra”. Conhecimento direto significa conhecer o fenômeno pelas três características (anicca, dukkha e anatta).
Enquanto o puthujjana percebe um objeto de forma distorcida, o discípulo enxerga a real natureza. Entende-o como um composto de impermanência, elementos condicionados relacionados com a Nobre Verdade do Sofrimento. Ele sabe que as forças materiais e mentais do processo de percepção surgem por cobiça, e que pelo fim da cobiça e desenvolvimento do Nobre Caminho este processo pode cessar. Enquanto isso, o puthujjana está preso sem saber, em uma rede de proliferação mental.
O discípulo no treinamento superior é instado pelo Buda a se abster da concepção e do deleite porque as inclinações por esses processos mentais ainda permanecem dentro dele.
Com a realização do estado de entrar na correnteza, ele erradicou o grilhão da ideia da existência de um eu, e portanto será incapaz de conceber com base no entendimento incorreto. Mas as contaminações do desejo e da presunção apenas são erradicadas com o estágio de Arahant, e dessa forma o sekha permanece vulnerável às concepções que possam se originar destas.
O Buda encoraja o discípulo a evitar a conceitualização para que possa ter total conhecimento das bases. Enquanto o puthujjana concebe os agregados através de conceitos e visões com cobiça, ou seja, “isto é meu, este sou eu, este é meu eu,” o discípulo sabe pensar de modo reverso. Usando seu conhecimento direto dos agregados ele os contempla assim: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu. Assim ele atenua primeiramente a cobiça, em seguida atenua o conceito, e por fim, o abandono confirma a libertação da ideia de um eu.

O Arahant

A terceira parte do sutta descreve o padrão de pensamento de um Arahant. Tanto o Sekkha quanto o Arahant possuem realizações no Dhamma. A diferença entre eles consiste no nível de realização da sabedoria.
O Buda explica a diferença da seguinte forma:

“Aqui, Aggivessana, qualquer tipo de forma material, quer seja passada, futura ou presente, interna ou externa, grosseira ou sutil, inferior ou superior, próxima ou distante – um discípulo meu vê toda forma material como na verdade ela é, com correta sabedoria assim: ‘Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é o meu eu.’ Qualquer tipo de sensação ... Qualquer tipo de percepção ... Qualquer tipo de formação ... Qualquer tipo de consciência quer seja passada, futura ou presente, interna ou externa, grosseira ou sutil, inferior ou superior, próxima ou distante – um discípulo meu vê toda consciência como na verdade ela é, com correta sabedoria assim: ‘Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é o meu eu.”

MN 35 – Culasaccaka Sutta

É desta forma que um discípulo ao ver a realidade como ela de fato é, como “isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”, e assim se liberta através do desapego. A ideia de um eu foi completamente removida e toda ignorância foi eliminada em todos os níveis. Conceitualizações, visões errôneas, cobiça, tudo isso não existe mais.
O processo de cognição em um Arahant continua funcionando normalmente, mas ele não vê mais objetos prazerosos como atrativos, pois ele está livre da luxúria; ele não vê mais objetos desagradáveis como repulsivos, pois está livre da raiva; ele não vê mais objetos neutros como confusos, pois ele está livre da delusão. Qualquer coisa com a qual ele faça contato, ele verá apenas de acordo com a sua real natureza, nada mais do que isso.
Graças a ao fim da busca por deleite, a mente de um Arahant não tem mais motivos para continuar no ciclo do saṃsāra.
Esta é a realização do Arahant.
Para o discípulo ainda em aprendizado, a realização é apenas parcial. Ele removeu a inclinação para a errônea visão de um eu, mais ainda precisa erradicar apegos egóicos sutis.
Mesmo um Nobre ainda procura deleite em objetos que fazem contato com sua mente, mantendo-o por mais um tempo atado ao nascimento e morte.

O Tathagata

Como um Arahant, um Buda também realizou a destruição das impurezas, e o padrão cognitivo dele é o mesmo do de um Arahant. Ele diretamente enxerga cada base cognitiva como ela realmente é, e não mais concebe nada sobre elas, pois eliminou cobiça, conceitualização e visões.
Um Buda é diferenciado de um simples Arahant em dois aspectos principais, um englobando o alcance de seu conhecimento, e o outro diz respeito a senioridade de sua realização.
O primeiro aspecto é uma diferença sutil. Enquanto o Arahant não conceitua os fenômenos porque apenas os entendeu por completo, um Buda não os conceitua porque ele os entendeu por completo até o fim.
Um discípulo alcança a libertação por compreender um limitado segmento de fenômenos conhecidos, mas um Buda alcança a libertação através do conhecimento onisciente. Ele conhece tudo o que pode ser conhecido em todas as suas formas e relações. Isto é o que define um Buda perfeitamente iluminado, com autoridade para iniciar uma dispersão e treinar outros para a Iluminação.
O segundo aspecto é que o discípulo se liberta na dependência de um Buda, mas o Buda se liberta sozinho, sem a dependência de alguém para ensiná-lo. Este aspecto é exposto no verso 171, onde o Buda explica sua realização da origem dependente – o conhecimento supremo que lhe ocorreu na noite de sua Iluminação sob a Árvore Bodhi.
A inserção da origem dependente neste ponto do sutta serve para o propósito de ligar o tópico principal do discurso com dois pilares fundamentais do Budismo – a origem dependente e as Quatro Nobres Verdades.
A primeira parte expôs o processo cognitivo de uma pessoa mundana, embebida em ignorância, a partir de visões distorcidas, passando por vários modos de conceitualização, até o deleite através das bases de cognição. Agora, ao afirmar que “o deleite é a raiz do sofrimento” e continuando com os fatores da origem dependente, o Buda expõe as consequência da conceitualização e deleite. Eles são a origem do sofrimento, e quando eles são perseguidos, o resultado inevitável é: um novo nascimento, que conduz ao envelhecimento, doença e morte. A cura para este processo consiste no entendimento de toda esta dinâmica. Pois quando os elementos da originação são percebidos e expostos, podem ser eliminados e o potencial de surgimento desaparecer. A ignorância é transformada em sabedoria, a cobiça é extinta pelo desencanto, e então o ciclo de existência chega ao fim.
Assim o Buda finaliza o discurso com uma triunfante afirmação sobre sua suprema realização, que removeu por completo todo e qualquer vestígio do saṃsāra que havia na sua mente.

(..) através da completa destruição, desaparecimento, cessação, abandono e renúncia aos desejos, o Tathagata despertou para a suprema perfeita iluminação, eu digo.”

Conclusão

Ao final do discurso, o sutta diz que os bhikkhus não ficaram contentes e satisfeitos com as palavras do Abençoado. É algo incomum, pois os suttas normalmente dizem que os bhikkhus ficavam felizes e contentes com o que o Buda havia dito.
Este descontentamento é explicado pelo Comentário.
Os bhikkhus não ficaram contentes com as palavras do Buda, aparentemente porque o discurso acabou atingindo fundo os Brâmanes no seu orgulho e talvez nas suas ideias brâmanes residuais. Mais tarde, relata MA, quando o orgulho deles havia diminuído, o Buda explicou para esses mesmos bhikkhus o Gotamaka Sutta (AN 3:12) durante o qual todos alcançaram o estado de arahant. 
Outra explicação possível é que estes bhikkhus, por terem sido brâmanes que dominavam os Vedas, ainda possuiam uma enorme influência destes textos na sua prática espiritual. Isso os levava a misturar o Dhamma com os Vedas e a considerar certos aspectos do Dhamma como controversos. Talvez a ideia mais difícil para eles abandonarem era a de um eu imortal, o Ātmam, um ponto central na doutrina brâmane e que foi refutada pelo Buda nesse sutta.
É válido também considerar as bases dos sentidos pelas quais os bhikkhus certamente tinham muito apreço. Ao expor a futilidade da busca por prazer e identidade através dessas bases, o Buda atingiu em cheio o orgulho e a noção de identidade destes ex-brâmanes que ainda eram meros puthujjanas. Isso causou seus ressentimentos.
Apesar de tudo, o Comentário afirma que todos estes bhikkhus mais tarde, alcançaram a Iluminação.


Recomendação para leitura complementar: Manter o fim na mente - Ajahn Anan


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