As origens "humanas" do Dharma
Autor: Arya Dharmananda, retirado do blog Budismo Aristocrático
Pergunta de um leitor para Arya Dharmananda,
Primeiramente gostaria de agradecer pelas respostas de alto nível que tem me fornecido. Isso com certeza demonstra bem a nós seguidores da Tradição onde devemos buscar orientações seguras e tradicionais sobre o Budismo.
A tomar como base os resultados de meus contatos com budistas e hindus no Brasil, creio que você é o único representante Tradicional dos ensinamentos orientais em terras brasileiras.
Justamente por isso, creio também que seja o único apto a iniciar discípulos nas formas esotéricas do budismo, apesar de não iniciar interessados externos à sua própria comunidade - o que lembra o procedimento de alguns sheikhs do Sufismo das Ordens Sufis tradicionais da Turquia, do Egito e de outros locais que visitei.
Pelo nível do conhecimento demonstrado, percebo estar tratando com um Alto Iniciado e, justamente por isso, peço para abusar um pouquinho mais de sua sabedoria.
Eu li na declaração de princípios de vossa Ordem que vocês consideram o Dharma como um caminho humano, concebido por seres humanos etc. As passagens às quais me refiro são:
1- O Budismo é um Caminho Humano, concebido por seres humanos e voltado para a realização plena do ser humano. Não é uma religião dita ‘divina’, não adora deuses ou deus, nada pede para eles, não se pronuncia sobre sua existência ou inexistência, não trata de fatos tidos como ‘sobrenaturais’, doutrinas inobserváveis, deuses ou deus, existência de fantasmas, vida após a morte, espíritos ou qualquer coisa do gênero. (vide Cula-Malunkyovada Sutra – As Curtas Instruções para Malunkya – Majjhima Nikaya 63 – Chuangonkyō 221).
2 – O Budismo não se presta a fins supersticiosos como trazer boa sorte, fortuna, curas ou influenciar por meios mágicos o destino da vida humana ou os fatos pertinentes a ela. As escrituras budistas condenam veementemente tais práticas chamando-as de tiracchana-vijja - artes inferiores (vide Brahmajala Sutra – Digha Nikaya 1).
Tendo em vista que os autores tradicionais, como Guénon, Évola, Schuon, Lings etc., situam as verdadeiras tradições em um plano sobre-humano, ou em uma dimensão além da humana e mesmo a origem dos ritos como não-humana, gostaria que você explicasse o sentido desse "Caminho Humano" e dessa concepção por seres humanos.
A parte da "vida após a morte" eu acredito que se refira à vida da personalidade individual, não é?
Também gostaria de saber sobre esse bloqueio em relação a magia etc., que é um ponto partilhado com Guénon especialmente.
Muitíssimo obrigado!
R.: Prezado XXX,
O Budismo é um Caminho Humano na mesma medida que são "caminhos humanos" todas as religiões, tradições e iniciações. De fato, são elas revestidas de características humanas, de linguagem humana, de costumes humanos, de atos condicionados pelas culturas humanas, voltados aos seres humanos etc.
O Grande Mestre Tiantai Zhiyi ensina que a linguagem e o aparato exterior do qual se reveste o Dharma, assim como toda a realidade, são transitórios e condicionados. Transitórios e condicionados são nossos pensamentos e os elementos que lhes servem de condição, de material. Condicionadas e causadas são nossas linguagens, são nossas línguas vernáculas, são também os ambientes nos quais originamos nossas caminhadas, nossos pensamentos, interesses etc.
Nesse ponto, somos limitados. Estamos limitados à nossa condição humana. Nossos símbolos só fazem sentido por se relacionarem com aquilo que faz sentido aos humanos.
Enquanto a Verdade Suprema, a Realidade Absoluta, não é condicionada, causada ou limitada, nosso modo de expressar e de comunicar nossas experiências com essa Verdade são causadas, limitadas e condicionadas.
É a nós impossível expressar com exatidão o que é incausado ou incondicionado, porque tudo em nós é causado e condicionado.
Sendo assim, não há sentido em confundir aquilo que é expresso em nossa linguagem humana como Budismo e como Dharma e o próprio Dharma em sentido absoluto, o Dharma como ser (Dharmakaya).
O Dharmakaya não é humano, não é causado, não é condicionado, é a própria Verdade toda penetrante. Mas, a nós, é impossível transmiti-lo dessa maneira. Estamos presos na dimensão da linguagem e dos conceitos. Só conseguimos transmitir algo pela linguagem (seja a oral, seja a simbólica) e com ela construir conceitos.
Nesse sentido, é estúpido acreditar que aquilo que chamamos de doutrinas superiores não tenham limitações humanas. É claro que as têm. Foram concebidas no mundo humano, construídas por seres humanos e transmitidas por vias humanas a outros seres humanos.
Acreditar que o incondicionado e incausado atuará de maneira direta no material, como acreditam aqueles que acham que os Budas e os Bodhisattvas "baixam" literalmente em seus ritos e se preocupam com seus desejos mundanos, com suas questiúnculas e vidinhas, é de uma arrogância e de um reducionismo sem par.
O Dharma é o máximo que podemos atingir em nosso contato com a Verdade. O Dharma nos proporciona uma "porta secreta" pela qual experimentamos a Verdade e nos unimos a ela. No entanto, só podemos fazer isso com nossa pequena condição humana e através daquilo que nossa natureza humana permite. Obviamente que a origem dessa porta é uma experiência entre o que é humano e o não-humano, ou seja, é algo superior ao meramente humano, mas só se transmite através das condições próprias de nossa existência meramente humana.
O Buda histórico era humano. Sua realização era sobre-humana, mas sua condição sempre foi a condição humana. Não era um ente de outra natureza, mas sim um ente de natureza idêntica à nossa que atingiu um Estado de Realização sobre-humano.
Os ritos são hierofanias, uma palavra cara a Mircea Eliade, ou seja, são encontros entre o humano e o não-humano. Partem dessa percepção do que é mais que humano e, por isso, têm origem não humana. As tradições também partem dessa mesma experiência, por isso também são não-humanas. Mas, isso é diferente de dizer que elas podem se transmitir fora dos caminhos humanos. Por isso, todas são concebidas como caminhos humanos e voltadas para seres humanos, não para entes etéreos ou imateriais.
Em relação à magia ou a ciências mágicas, podemos dizer que são obstáculos efetivos em qualquer via de iniciação efetiva. Elas dispersam forças e demandam esforços que, de maneira geral, redundam em fracassos e inutilidades.
Concordo plenamente com Guénon em "O Erro Espírita", quando ele afirma que os médiuns são doentes a quem devemos ter piedade e prestar auxílio e não "seres evoluídos" ou que alcançaram qualquer realização. Também concordo quando ele diz que os tais "poderes espirituais", admirados pelos ocidentais nos faquires vulgares do Oriente, não passam de empecilhos e inutilidades para as verdadeiras realizações espirituais. Inutilidades custosas e que demandam tempo, mas, ainda assim, inutilidades.
Sim, você está certo com relação à parte da "vida após a morte". Referimo-nos à negativa da subsistência da personalidade...
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