A guerra entre a mente e as Kilesas

Ajahn Mahā Bua fala sobre a luta para a libertar-se do samsāra. 



Ajahn Mahā Bua
"Guerra mundial" significa a destruição e o fim dos seres do mundo. Isso ocorre de tempos em tempos, mas a guerra dentro de nós ocorre a todo instante. Essa guerra todos possuem, ocorre em todos nós. Em geral está em nosso corpo e nossa mente. No corpo são as doenças, dor de cabeça, febre e demais sintomas. Isso é uma guerra. Temos que usar medicamentos para eliminá-la. Se o medicamento estiver correto saramos, se não estiver, morremos. Isso é uma guerra, guerra do agregado material. "Guerra mundial" diz respeito a agregados materiais, destruição de bens e riquezas, e destruição da mente uns dos outros. A guerra interna entre as kilesas e a mente é algo parecido, também destrói nossa mente e bens relacionados a nós. Se essa guerra se encerrar, a guerra mundial não ocorre, nossa guerra interna não ocorre. Na medida em que o combustível da guerra, as kilesas, estiver queimando, elas se mostram e todos conseguem ver. Mesmo se só estiver queimando por dentro, ainda se manifesta na mente daquela pessoa. Tudo isso são guerras, mas numa guerra sempre há luta, caso contrário não se chama "guerra". Podemos olhar nesse corpo: quando surge uma doença usamos um medicamento para remediar ou contra-atacar a doença. Há uma luta, então podemos chamar de guerra. Mas entre a mente e as kilesas, se não houver remediar, se não houver purificar, significa que não há ninguém lutando e então as kilesas estão livres para pisotear e destruir à vontade. Não haverá ponto final, não haverá fim para o sofrimento que existe na mente dos seres desse mundo. Isso é algo muito assustador. Por isso os praticantes do Dhamma devem se esforçar e se dedicar para diminuir aquilo que é um veneno para sua própria mente. Remediar significa lutar, ou podemos chamar de guerra, ou seja, guerreamos, há luta. Qualquer instante, momento ou dia em que as kilesas vencem, temos que passar por dor e sofrimento mental. Se vencemos, temos felicidade e frescor mental. Mesmo se as kilesas se renderem apenas por um período curto, ainda ganhamos bem-estar por termos purificado, termos lutados usando vários métodos como praticar meditação sentado e andando ou usar inteligência para corrigir o problema. Se nosso artifício está ao nível das kilesas, elas recedem, uma a uma. Se o artifício não estiver à altura, nós então enfrentamos dificuldades. O artifício para lutar com as kilesas é sati-paññā. O combustível é ser movido por esforço contínuo. Tem que haver esforço, resiliência; se estiver pesado, aguenta; se estiver leve, luta sem retroceder. Esse é o combustível que nos dá energia. Sati-paññā é a arma para lutar com todas as kilesas e fazê-las diminuir em nossas mentes para que tenhamos frescor e felicidade. Isso é o que se chama "luta entre kilesas e o Dhamma". Se há luta, há perder e vencer. Se não há luta, se nos rendemos logo de cara, que se chama "rendição completa", não haverá felicidade alguma, só haverá o sofrimento que nasce das kilesas. Mas se houver luta, mesmo havendo a dificuldade da luta como ocorre na guerra, ainda teremos vitórias de tempos em tempos. Teremos um pouco de felicidade e bem-estar. Nossos refúgios, quer seja o Buddha, o Dhamma ou a Sangha, já passaram por essa guerra. O Buda guerreou por seis anos até a bandeira de vitória ser hasteada e o refúgio do Dhamma surgir para nós. Todos os sāvakas entraram na guerra desde o dia em que se ordenaram, ou mesmo quando ainda eram leigos e tinham propósito firme em praticar o Dhamma, até se ordenarem monges budistas e tomarem a resolução de desenvolver a si mesmos para remover as kilesas que existiam na mente deles até que acabassem por completo, uma a uma. No campo de batalha, ou seja, a prática que ocorre em diversos locais, diversas formas, diversas posturas, como nas florestas, nas montanhas, sob a sombra de uma árvore, onde quer que seja apropriado para vencer a luta, dependendo da escolha de cada um que deve ser de acordo com suas preferências. O método é ter o suporte de sati-paññā e dedicação o tempo todo até que nos tornemos "Sangham Saranam Gacchāmi", ou seja, aqueles que venceram a guerra entre as kilesas e o Dhamma, experienciaram a felicidade suprema em suas mentes e se tornaram o terceiro refúgio, "Sangham Saranam Gacchāmi". Esses três refúgios experienciaram a guerra por completo e então obtiveram vitória. Se somos discípulos do Buddha mas não temos coragem de entrar na guerra, nos rendemos por completo o tempo todo, o nome "discípulo do Buddha" perde seu significado por completo. Portanto, para que o significado de "discípulo do Buddha", "filho do Buddha", se torne real, temos que praticar o Dhamma, tal qual viemos fazer agora. Todos devem saber que vir a esse local de prática não é ir a um palácio, como as pessoas mundanas gostam; é vir a um local austero e difícil. Não é possível que seja como estar numa casa confortável de todas as formas. Na nossa casa não há floresta, viemos à floresta e aqui existem todo tipo de coisas, obstáculos e assim por diante - pensem sozinhos. Tudo vai contra nossa vontade, mas na nossa mente não pensamos que essas coisas são difíceis. Nos resolvemos a praticar e erradicar as kilesas de nossa mente com satisfação em realizar esse esforço. Isso é o que se chama "seguir os passos do Buddha". Passamos a ser um que luta na guerra entre kilesas e Dhamma, onde o coração é o campo de batalha. Nesse coração há ambos: o Dhamma existe no coração e as kilesas também. A guerra está aqui. Portanto, durante nossa luta com as kilesas é normal nossa mente sentir que está sofrendo porque ela é o campo de batalha entre as kilesas e o Dhamma, que guerreiam bem aqui. Temos que aceitar esse desconforto pois o resultado dessas dificuldades vindas da prática, da luta contra as kilesas, é felicidade de corpo e tranquilidade mental posterior. Quando sentir desânimo, fraqueza ou falta de energia e resolução em praticar de forma progressiva para desenvolver a mente, lembre-se da bandeira que o Buddha citou no Dhajagga Sutta: "Itipiso bhagava" ou "Araññe rukkhamūle vā suññāgāreva bhikkhavo" Ele ensinou aos monges: "Quando estiverem ao pé de uma árvore ou numa cabana afastada, caso surja medo, lembrem-se do Buddha, o Professor, mantenham essa lembrança próxima ao coração e aquele medo que surgiu na mente, aos poucos desaparecerá." Ele disse: "Anussaretha... sareyyātha..." No Dhajagga Sutta: "Atha buddham sareyyātha" "Caso pensando no Buddha aquele medo ainda não desapareça, então pense no Dhamma, e o perigo cessará, aquele medo que surgiu na mente. Se pensando no Dhamma e ainda não desaparecer, pense na Sangha e o medo desaparecerá. Essa é uma fundação para o coração que faz nascer vitória e firmeza na mente. Tomem isso como fundação quando estiverem em locais desolados como ao pé de uma árvore, numa cabana afastada, na montanha, onde for, tomem essa fundação. Tomem o Buddha, o Dhamma, a Sangha, qualquer uma das Três Joias como fundação para a mente, e assim vencerão. O medo não virá perturbar a mente e logo conseguirão obter vitória. Essa é a admoestação do Buddha aos monges na época dele. Quer seja na época do Buddha ou nos tempos atuais, o Buddha é o mesmo e somos budistas, ou seja, pessoas iguais às que viviam na época do Buddha, o que faz surgir medo e tremor são as kilesas que vivem na mente - tal qual na época do Buddha. Pensar no Buddha, Dhamma e Sangha, os Três Refúgios, continua igual e por isso é algo apropriado desde então até hoje em dia. Onde quer que estejamos, caso surja desânimo e fraqueza, pense em como o Buddha praticou. Como praticou para tornar-se o Professor? Praticou com fraqueza e vacilando como nós aqui, ou como foi? Pense sempre nisso. Se tomarmos um bom exemplo como objeto de reflexão, vamos aos poucos progredir naquela direção e as kilesas, a fraqueza e vacilação, não vão conseguir nos arrastar. Então pense no Dhamma: o Dhamma é o que há de mais excelente no mundo. E a preguiça, fraqueza e vacilação são coisas excelentes ou não? Então por que seguimos as ordens delas e sentimos tanta satisfação em sermos preguiçosos, fazer corpo mole e sermos fracos? Se são mesmo excelentes, por que as pessoas nesse mundo, que estão cheia delas, não são excelentes? E o que vamos tomar como ponto de referência para decidir o que devemos largar e o que devemos pegar? Se o raciocínio estiver correto, teremos que lagar da fraqueza e tomar a firmeza para podermos alcançar o Dhamma excelente. Por acaso o Sangham Saranam Gacchāmi é feito de pessoas fracas? A palavra "fraqueza" e o Sangham Saranam Gacchāmi são compatíveis? Fraqueza vem das kilesas e serve para destruir o Refúgio que existe em nossa mente e não deixá-lo surgir. Isso é uma forma de alertar a si mesmo, ensinar a si mesmo. É uma briga entre kilesas e o Dhamma, kilesas e sati-paññā. "Burrice" são as kilesas, mas elas são espertas na hora de ensinar aos outros, mas elas mesmas são burras. Quem acredita nelas são burros, são pessoas grosseiras. Quem acredita nelas são preguiçosos e fracos, retrocedem. Mas aqueles que acreditam no Dhamma conseguem remover essas coisas e fazem progresso em seguida. Portanto, acreditar no Dhamma é algo que nos faz ganhar valor e ter fundação. A prática do Dhamma tem que ter um pouco de dificuldade. O caminho é o mesmo, desde a época do Buda até os dias atuais. Se estamos lutando com kilesas, onde haveria conforto? Há dificuldades até mesmo num trabalho normal, que dizer da luta contra as kilesas que são a coisa mais grudenta dentro da mente e a domina há muito tempo. É o mestre do samsāra há tempos imemoráveis. A mente de todos é controlada por isso, portanto não é possível que seja fácil se livrar disso. Sendo assim, temos que ir engatinhando, nos esforçando ao máximo de nossa capacidade, utilizando inteligência e diligência em todas as coisas que estão de acordo com o Dhamma, para que as kilesas diminuam e surja bem-estar de corpo e mente para nós, que seguimos o caminho budista. Isso é uma fundação importante que devemos praticar. Pensem sempre nisso quando estiverem praticando o Dhamma porque as kilesas estão sussurrando o tempo todo, quer estejamos sentados, deitados, de pé, andando ou qualquer postura, as kilesas sussurram de acordo com o truque delas. Se não despertarmos o Dhamma rápido o suficiente, vamos ser levados pelas kilesas sem se dar conta. Se sempre tivermos sati, quando algo sussurrar saberemos se vem das kilesas ou do Dhamma, e teremos como resolver ou corrigir aquilo. Tanto o Buda como os sāvakas enfrentaram muitas dificuldades até quase perderem a vida, antes de se tornarem nosso Buddham, Dhammam, Sangham Saranam Gacchāmi. Nós que seguimos os passos deles e estamos no campo de batalha temos que enfrentar dificuldades, às vezes arriscar nossa própria vida. Temos que obter aquilo que almejamos mesmo que nos custe a vida; se não conseguirmos, então morremos no campo de batalha; se não morrermos, temos que obter vitória. Às vezes tem que ser assim para aqueles que desejam o Dhamma supremo em suas mentes. Se tomarmos a fraqueza como fundação, como tem sido desde sempre, seremos iguais a todas as demais pessoas porque todos possuem essas coisas, é algo comum, por isso as pessoas são iguais, não há quem consiga melhorar. Se removermos o que é ruim, essa coisa baixa, em seguida ficamos mais firmes, nossa mente permanecerá ciente de si. As kilesas se misturam com essa ciência e a distorce de diversas formas, sempre em direção ao que é baixo. Sati-paññā é uma ferramenta para erradicar, obstruir essas coisas que vemos não serem boas, expulsá-las e assim a mente ganha brilho e clareza. Enxergamos o Dhamma, vemos sofrimento e felicidade como de fato são, vemos o que tem e o que não tem fundação como de fato são, com clareza, e agimos de acordo com o que é bom e correto; assim vamos encontrar felicidade e progresso dentro de nossas mentes. Isso é uma fundação importante na prática do Dhamma. O Buda praticou assim, nós temos que praticar assim porque o caminho do Dhamma tem que destruir as kilesas, tem que guerrear com elas. Kilesas são como obstáculos que aos poucos vão nos sabotando, por isso é normal que haja um pouco de dificuldades em remover as kilesas. Mas não devemos pensar que isso é um obstáculo, apenas trabalhamos sem parar. Morte está esperando à frente de todos nós. Neste instante estamos aqui e estamos todos cheios de morte. Não tem ninguém melhor que ninguém, a morte permeia o corpo de todos. E cada segundo que permanecemos sentados aqui vai passando, se tornam minutos, se tornam horas e vão passando. Segundos, minutos, horas, dias, meses, vão passando até chegar a hora da morte e então morremos, sem exceção. Não importa o quanto gostem uns dos outros, a morte não diferencia; quando chega a hora, têm que se separar. Por isso o Buddha ensinava "Sabbe sattā"1 - todos os seres são parceiros no sofrimento e nas doenças, "averā hontu" - não guardem rancores uns pelos outros, "abyāpajjhā hontu" - não agridam uns aos outros, "sukhī attāna pariharantu" - que todos sejam felizes. Ele ensinava aos seres que são parceiros no sofrimento que tenham consideração uns pelos outros, tenham bondade e compaixão uns pelos outros. Afinal, somos como animais que anunciam para venda. Trazem num carro ou os tocam pelas ruas e anunciam: "Ô! Esse animal será abatido amanhã!", anunciam e tocam o sino; depois levam ao abatedouro. Nosso sino já foi tocado. Essa pessoa vai naquele dia, aquela vai naquele outro; o sino já foi tocado, só que não é como o que tocam para os bois e porcos. Nosso corpo inteiro é o sino que anuncia nossa morte, por isso não devemos ser desatentos. Se esforce em praticar bondade desde já, pois ela é um bem que nos pertence. Esse corpo é um pertence da morte, da degradação, deixe ir, não se apegue. Se apegar é um tormento à toa. Deixar ir de acordo com a verdade é confortável e demonstra que conhecemos o Dhamma. Se sabemos a verdade, deixamos ir de acordo com a natureza de anicca, dukkha e anatta. Esse corpo faz parte do mundo de anicca, dukkha e anatta; deixe ir de acordo com a natureza dele. Graças à sati-paññā que enxergou de forma correta, nossa mente irá largar e não vai ficar carregando o fardo pesado que pertence ao mundo de anicca, dukkha e anatta. A mente que aprendeu isso é leve, brilhante e clara; será capaz de abrir mão de tudo e ser livre, capaz de escapar do mundo das Três Características2 . Isso é o que se chama "Nibbāna". Pode chamar do que quiser pois quando chega nesse nível já está tranquilo. Peço que todos pratiquem.


Notas:
1 Trecho do cântico de Metta recitado durante a pūja. 
2 Impermanência, sofrimento e “não-eu”.


Retirado do blog Dhamma da Floresta 

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