Ateísmo budista
Texto retirado do blog Budismo Aristocrático.
P. Arya Dharmananda,
Gostaria que você me explicasse um pouco sobre a questão do ateísmo no Budismo.
Você afirma que o Budismo é ateu, mas, por outro lado, tem uma visão bastante tradicional sobre o sagrado, que lembra muito, inclusive, o René Guénon, o Évola e outros autores tradicionalistas.
Você poderia explicar isso?
R. Muito boa sua pergunta.
Usamos o termo "ateísta" em um sentido bem diferente do sentido dado pelos ateístas modernos, materialistas e anti-espirituais.
No Budismo, o termo "ateísta" é utilizado simplesmente pela ausência de um outro mais adequado.
O Budismo não é um sistema, propriamente falando, de crenças. É um tipo de sistema dialético e metafísico que embasa uma prática de vida, uma conduta e uma visão da realidade.
É uma religião, no sentido de "re-legere", ou seja, de releitura da realidade através de uma visão intelectual e metafísica, não materialista e não "sensorialista" (perdoe o neologismo), ou seja, não deve se fundamentar em algo que se sinta ou perceba através dos sentidos ou das emoções.
Não há o conceito de deus criador, sustentador ou mantenedor do universo.
Sempre que lançamos um conceito, como "deus", "ser", "pessoa" etc., torna-se necessário elaborar uma série de justificativas que sustentem esse conceito.
No Budismo, a Suprema Realidade ou Suprema Verdade ou ainda Verdade Ôntica (Paramartha Satya), não é expressa através da conceitualização, mas através da própria realização da Iluminação.
A Iluminação, em si mesma, é a identificação entre a personalidade individual, que é ilusória, com a própria Natureza de Buda, ou seja, a Realidade Absoluta que permeia todos os fenômenos e que se manifesta em todos eles.
Os entes naturais e todos os fenômenos físicos e mentais, são fruto do condicionamento. No entanto, a Verdade Ôntica é incondicionada, ou seja, não é identificável com o mundo fenomênico em si, mas é a Sabedoria que permeia a todos os fenômenos.
No Budismo Esotérico, há a personalização dessa Verdade Suprema como o Dharmakaya Mahavairocana.
Mahavairocana não é um ser no sentido de estar apartado de outros seres. Ele é "o ser" e não "um ser".
Fazendo uma analogia, podemos dizer que Mahavairocana é a essência única e verdadeira do todo. Não há nenhuma essência real fora dele. As essências individuais e condicionadas (tomadas em sentido absoluto e não no sentido das definições de "essência" aristotélicas) são completamente ilusórias.
Você não pode dizer que o fogo é separado dos elementos comburentes. Também não pode afirmar que o fogo de uma vela acesa hoje é o mesmo fogo da fogueira acesa há 500 anos atrás. Ou pode? Sim e não. Na verdade, você está falando de um fenômeno. Essencialmente, não há diferença entre o fogo de sua vela hoje e o fogo da fogueira de 500 anos atrás. No entanto, o fogo da fogueira de 500 anos atrás não está presente aqui e agora, seus elementos comburentes já se consumiram e a própria atualidade da luz e do calor já se extinguiram. Ou você pode iluminar seu quarto com a luz de 500 anos atrás? Mas, do ponto de vista absoluto, o fogo é sempre fogo, ou seja, luz e calor. Sendo assim, ele é constantemente existente em potência, mesmo que não seja em ato. Nesse ponto, podemos dizer que "o fogo" tem uma essência "ideal", no sentido platônico do termo, e que todo fogo só é fogo na medida que participa dessa essência ideal...Veja como o Budismo é parecido com o platonismo...
E o que dá a potencialidade de todos os fenômenos senão a constância interna de suas leis? Não há uma lei interna em todos os fenômenos? Cada pequena célula não sabe como se comportar? Cada ação não porta sua própria reação? Todas as coisas não estão limitadas por sua própria realidade intrínseca? E tal realidade não é constante e análoga em todos os tempos e lugares? Ou o fogo é diferente no Brasil e no Japão? Ou 4+4 deixam de ser 8 em algum lugar?
A percepção da verdade, ou seja, a medida da conformação do nosso intelecto com os objetos cognoscíveis e a percepção de sua real "entitude" é uma constante. Não há verdade pela metade. Não há uma verdade aqui e outra ali. Quando afirmamos algo que não é, simplesmente utilizamos um conceito de ausência, ou seja, ausência de uma verdade.
Mahavairocana é a personificação da "Realidade Completa", ou da "Suprema Verdade", que se manifesta, parcialmente, em cada pequena verdade. Mahavairocana está em tudo, tanto fora de nós quanto dentro de nós. Não há diferença entre o microcosmo e o macro-cosmo.
Nagarjuna, no Da Zhi Tu Lun (Mahaprajñaparamita-Sastra), diz que cada palavra verdadeira, cada ensinamento verdadeiro, é a palavra do Tathagatha, mesmo que não esteja no cânone.
A interiorização dessa Verdade Absoluta, a identificação completa com esse Absoluto, é a própria Iluminação.
O Iluminado não "crê", ele sabe.
É diferente do conceito de se ter um deus exterior, um deus que atua no universo de maneira semelhante às produções humanas, dotado de uma vontade que, por si só, é condicionada...
Note que, nas tradições judaico-cristãs, a vontade divina é condicionada pelas ações humanas. Adão peca e a vontade divina é condicionada para expulsá-lo do paraíso terrestre. O povo de Israel peca e a vontade divina é condicionada para castigá-lo. O povo de Sodoma e Gomorra peca e a vontade divina é condicionada para destruí-los. Os homens pecam e a vontade divina é condicionada para destruí-los pelo dilúvio universal. E assim por diante.
Por não termos esse conceito de um deus exterior, antropomórfico, com uma "vontade" que é causada e condicionada, nos dizemos "ateus", mas não no sentido comum do termo...
Representação do Buda Mahavairocana |
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