Praticar sem "para".

Luang Pu Jandee fala sobre como é um verdadeiro Sotāpanna e faz um elogio ao Zen. 
Tradução: Ajahn Mudito 

Luang Pu Jandee
Hoje um garoto veio me perguntar, perguntou sobre o sotāpanna. parece ser um desses garotos modernos. É pergunta estranha É raro alguém perguntar sobre sotāpanna(*)... Ele perguntou: "O sotāpanna alcança os jhānas?" E então, alcança? Tem algum sotāpanna aí? Parece que hoje em dia tem que ter insígnia: uma estrela, duas estrelas, três estrelas. Hoje em dia tem que procurar rótulo. Ainda nem começou a praticar mas já está perguntado sobre níveis: nível X, nível Y... Se quer saber, vá ler nos livros. Se o que você quer é nível, eles já escreveram: nível X, nível Y. Quer saber sem ter praticado. No que diz respeito à prática, os mestres não querem que tenhamos esse tipo de conhecimento. Isso irá perturbar a prática. Eles ensinam a praticar para largar, a não deixar essas coisas virem incomodar. Que nível conseguir, não importa, consiga abandonar as kilesas e já está bom. E então perguntou: "O sotāpanna tem quantas qualidades?" É dito que tem três qualidades, ele abandonou sakkāya-ditthi, vicikicchā, sīlabbata-parāmāsa(*), mas não respondi em muitos detalhes. Essas são as qualidades. O sotāpanna é aquele que caiu na correnteza, é aquele que conseguiu abandonar kilesas até um certo ponto. É aquele que alcançou o Dhamma, caiu na correnteza. Mas ele tem jhāna? São dois assuntos diferentes. Mas se perguntar: "Ele tem samādhi?" Tem, tem que ter samādhi. Porque para a pessoa ouvir o Dhamma e então alcançar o Dhamma, a mente tem que estar firme em samādhi. A mente flui com a correnteza do Dhamma. Ou, para contemplar o Dhamma, a mente tem que estar firme em samādhi, sem se distrair, só então consegue entender aquele Dhamma. Então a mente tem que possuir samādhi e energia para conseguir entender aquele aspecto do Dhamma. Então saberá que maldade deve ser abandonada e bondade deve ser desenvolvida. Se a mente estiver confusa, não tiver paz, ela não consegue alcançar, não consegue enxergar. Não consegue enxergar o Dhamma. Mas Luang Pó Chah dizia: "Ser sotāpanna, sakadāgāmi, anāgāmī, significa ter abandonado níveis de kilesas, do mais grosseiro ao mais sutil." Mas se ainda não acabou, então não ainda não acabou! Mesmo que seja sotāpanna, sakadāgāmi, anāgāmī; ainda não acabou. Ainda tem que praticar para abandonar, seja muito ou pouco, mas ainda tem que continuar praticando para abandonar até chegar ao fim, até ter acabado. Quer dizer, ainda há algo ali, é algo que ainda temos que praticar para abandonar. Não precisa se preocupar com nível X ou Y, pergunte a si mesmo: "Estou melhorando graças à minha prática do Dhamma? Antes tinha ganância, ela diminuiu? A raiva diminuiu? Antes eu não sabia o que era o que, meu entendimento melhorou um pouco?" Se perguntar e olhar dessa forma, vai conseguir avaliar a si mesmo. Avaliar os frutos da sua prática. Se não perguntar, não vai ter como avaliar. Se compararmos com quando começamos a praticar, não importa quantos meses ou anos, se sentirmos que melhorou, mostra que deu resultado, mostra que caímos na correnteza, caímos na correnteza da prática da bondade. Só isso deveria ser motivo para ficarmos orgulhosos por nossa prática ter dado resultados. Se tiver praticado e não ver melhora, isso também é uma forma de avaliar a si mesmo. Praticando de uma forma, ganância, raiva e ignorância não diminuem, mas sim, aumentam, então temos que mudar, buscar um novo método. Se estiver bem, tiver hiri-ottappa, se, diferente do que era antes, surgir vergonha e medo, mostra que nossa prática deu resultado: sentimos vergonha de fazer o mal. Olhe só isso, não precisa olhar muito, e vá praticando. Requer fazer, requer praticar. Os mestres diziam para praticar com se não fôssemos obter nada, pois se a prática estiver correta, os resultados surgem sozinhos. E um ponto importante é: não deixe desejo interferir muito, apenas pratique muito. Se deixar, o desejo vai nos fazer tentar furar a fila, fular a fila da prática, porque não consegue esperar - quer alcançar rápido, quer ver resultados rápidos, Pratique como se não fosse obter nada, pratique continuamente, com consistência. Só isso, não precisa muito, pratique continuamente, com consistência, sem quebras. Se houver quebra, tem que aumentar. Se faltar num dia, tem que praticar o dobro. Não deixe faltar. Se senta em meditação por uma hora, uma hora por dia, e um dia faltar, tem que aumentar para duas horas. Não deixe faltar. Se fizer assim, podemos dizer, praticamos com consistência. Não precisa ficar preocupado com resultados. Se praticar continuamente, sem parar, os mestres dizem que a prática não tem como ficar parada, ela progride sozinha. Lá na frente veremos o valor daquilo, com o passar do tempo, e então vamos ver que mudamos muito. Como os monges, quando recém-ordenados eles não sabem nada, mas com o passar do tempo eles vão ganhando conhecimento. No começo mal conhecem a palavra "Dhamma", mas vão vivendo, vão estudando, vão praticando e o conhecimento surge naturalmente. É assim, requer fazer, treinar, viver próximo aos amigos de prática. Aos poucos surge conhecimento, aquilo que não sabíamos, passamos a saber. Eu mesmo não sabia, diziam "cinco khandhas" e eu não sabia o que era, pensava que era a cuia de tirar água(*). "Cinco khandhas", pensava que eram cinco cuias. Eu ouvia "5 khandhas" e pensava: "Que será isso?", pensava que era a cuia de tirar água, eu era tonto a esse ponto. Mas Luang Pu Chah dizia: "Saber, vem de não saber, só então fica sabendo. Ser esperto, vem de ter sido tonto, só então fica esperto. Tem que ser tonto antes de ficar esperto. Não seja esperto e depois fique tonto, é melhor ser tonto e então ficar esperto!" De não saber, aos poucos estudamos, aprendemos e começamos a saber. Não deixe desejo se estabelecer ali. Não sei... quando praticava com o mestre, nunca fui perguntar sobre sotāpanna, sakadāgāmi, anāgāmī. Ele só dizia: "Faça assim, pratique desse jeito, de forma contínua." Isso é uma prática, é um caminho de prática, é algo que se acumula. Não é possível apenas querer alcançar sem ter feito. Se não houver causa, não haverá efeito. E é tranquilo assim, não deseja ganhar esse ou aquele rótulo - sente vergonha. Os mestres não dizem: "Eu sou sotāpanna.", eles tem vergonha de fazer isso, porque eles já sabem se conseguiram abandonar ou não as kilesas, não necessitam proclamar por aí, não precisam que ninguém saiba, eles já sabem dentro deles mesmos. Se fossem proclamar, iam sentir vergonha. Por que isso? Sentiriam vergonha das pessoas mundanas e também das pessoas sábias. Especialmente os monges, sempre devem refletir: "Minha conduta seria criticada pelos sábios?"(*), "Ainda sou defeituoso, mesmo tendo alcançado sotāpanna, ainda possuo defeitos." Eles sentem vergonha, vergonha daqueles que são sábios, têm medo que digam: "Ah, já é Sotāpanna!? Melhor que ser cachorro, não?"(*), têm medo de ouvir algo desse tipo, têm vergonha. Não importa que nível atingiu, o importante é abandonar as kilesas. Assim é tranquilo. Praticamos para ficarmos bem, para que a mente fique tranquila, não esquente, não sofra. Só isso já chega, já é felicidade. Buscamos entender o Dhamma, entender que isso é bom, aquilo é ruim, e então abandonar o ruim e praticar o bom. Só essa felicidade já é suficiente. Tenha hiri-ottappa, medo e vergonha de fazer maldade, tenha essa sensação e nossa prática do Dhamma será feliz. Não seja. "Sou isso, sou aquilo", não seja. Essas coisas são por si mesmas. Os mestres dizem "Não pratique por ganância, pratique para abandonar." É bom, praticar para largar, renunciar. Para abandonar, largar. Se treinar assim continuamente, não vai se apegar sequer à bondade. Obtém bondade e larga dela, se não largarmos ela se volta e vem nos picar. Bondade... A bondade e o mundo... ela ainda faz parte dos dhammas mundanos. Não se apegue ao bem. Tendo conseguido, largue bem ali. Já viram os grandes mestres? Eles têm algo bom, mas largam aquela bondade, não se apegam àquela bondade, portando não esquentam a cabeça. Eles são bons, mas se alguém disser que não são, continuam tranquilos porque não têm apego àquilo. Se nos apegamos ao bem e alguém diz que não somos bons, esquentamos porque não largamos a bondade. Fazemos o bem, mas se alguém disser que não somos bons, sofremos. Isso é porque nos apegamos à bondade, não sabemos largar a bondade. Se entendemos a bondade, quando fazemos nos sentimos bem, não importa o quanto eles digam que não é bom, continuamos bem, ainda conseguimos sorrir. Essa é uma pessoa que conhece bondade. Temos que ter cuidado com isso, à vezes nos deixamos levar. Não é coisa pequena, às vezes quando nos deixamos levar pela bondade, o ego começa a ficar gigantesco. Quando vem, vem com força total: "Quem disse que não sou bom? Quem disse que estou errado?" - sendo que já estávamos certos! Isso é importante. Os mestres ensinam a praticar até conseguir enxergar, até conhecer o bem e conhecer o mal. Falar assim é fácil, mas conhecer o bem significa olhar de verdade, até não haver mais apego. Esse ponto é importante. Conhecer o mal de verdade, é conhecer até não mais fazer o mal. Tem que conhecer até chegar a esse ponto. Se conhecer apenas superficialmente, não dá resultado. Se não sabe de verdade, pensa: "É só um pouco, não tem importância.", vê? "É só um pouco de maldade, não tem importância.", acaba agindo desse jeito. Isso é porque não conhece de verdade o mal. Se não conhece de verdade o bem, é a mesma coisa, se apega ao bem. É fácil deixar passar, às vezes não conseguimos adivinhar que as kilesas estão escondidas ali. Tudo isso se unifica no ensinamento do Buda que diz "Não seja descuidado." Tem que praticar bem, até alcançar o ponto certo, conhecer o bem e o mal. Então os mestres dizem para ir praticando, sem querer ganhar nada, assim é tranquilo. Se disserem que ganhamos algo, estamos tranquilos, se disserem que não ganhamos nada, conhecemos a nós mesmos, estamos tranquilos. Vamos desse jeito, vamos tocando nossa prática desse jeito. Mesmo se disserem "Oh, você pratica desse jeito há vários anos, e ainda não alcançou sotāpanna?", continuamos tranquilos, verdade ou não, continuamos tranquilos. Veja se conseguiu largar. Antigamente éramos piores, praticamos e ficamos melhor, as kilesas diminuíram, a ganância diminuiu, aprende a ser frugal; antigamente não sabia sequer fazer caridade, renunciar às coisas, externas ou internas, mas depois que começou a praticar, aprendeu. Externamente, vê o valor da caridade, internamente, vê o valor da renúncia. Sabe tanto externamente quanto internamente, isso é ter melhorado. Isso já é conhecer abandonar e desenvolver, o que se deve abandonar, o que se deve desenvolver. Se já sabe isso, continue praticando. Não precisa se preocupar com os outros, quem quiser dizer o que, que digam! Isso mostra que temos firmeza no coração, firmeza no caminho de prática, não vacilamos. Quem disser bom ou ruim, certo ou errado, continuamos firmes. Ninguém sabe como nós, nós é que temos que saber. Quem sabe ou não sabe somos nós mesmos. É ou não é? Está certo ou errado o que estou dizendo? Se não estiver certo, pode contestar, assim vamos aprender. O método de prática varia, talvez os mestres não ensinem da mesma maneira, as técnicas, os métodos, podem ser diferentes, mas eu aprendi dessa forma, meu mestre me ensinou assim, então falo desse jeito. Caso alguém tenha um método melhor, parabéns, se for algo que leve a abandonar. Prática é algo pessoal, não há duas iguais. Modo de prática depende do mérito, do pāramī de cada pessoa, mas mérito e pāramī só nasce se tiver praticado, só falta saber se vamos praticar muito ou pouco. Se for muito, teremos bom pāramī, se for pouco, não teremos pāramī ou teremos muito pouco. Isso só nasce de praticar. Se você acha que não tem pāramī, pratique bastante, pratique mais do que as demais pessoas, só isso, e a quantidade vai aumentar sozinha. Alguns pensam "Oh, eu tenho pouco mérito", e então jogam fora, não praticam; têm pouco, então não praticam. "Eu não tenho pāramī, não vou praticar o Dhamma, não consigo observar sīla, não tenho mérito." Se sabe disso, deveria praticar, não? Se praticar, essas coisas surgem sozinhas. Sabe que não tem e então não pratica, então fica com ainda menos, já tinha pouco e no final não tem nada. Somos discípulos daquele que sabe, do Buda, "aquele que sabe". Buda, não é? Buda: aquele que sabe, o desperto, de mente clara. Somos discípulos daquele que sabe, temos que treinar para que surja saber. Saber o quê? Se não sabe, então pense no Buda, pense "O que é que o Buda sabe?", tem que perguntar bem ali. Tem que perguntar "Sabe o quê? O que o Buda sabe? Ele despertou para o quê?", pergunte isso. Esse é "aquele que sabe". Do que ele despertou para ter então a mente clara e brilhante? Ele sabia muitas coisas, sabia abandonar e sabia desenvolver. De acordo com que escreveram nos manuais para os estudantes das escrituras, o Buda conhecia o bem e o mal por si mesmo, eles escrevem assim, e ele ensinava para que as demais também soubessem de acordo. Esse é o Buda, aquele que sabe. Isso eles traduziram para uma linguagem coloquial para facilitar o entendimento. Se dissessem "ele conhecia as Nobres Verdades", alguns talvez não entendessem, não sabem o que são as Nobres Verdades, porque nós nos envolvemos somente com bem e mal, conhecemos só bem e mal. Como acabei de dizer, conheça de verdade o bem, conheça de verdade o mal. Conheça como o Buda, como ele conhecia, conheça o mal até conseguir largar o mal, conheça o bem até conseguir largar o bem. Isso é o que se chama "conhecer", e isso vai resultar num saber ainda mais elevado que esse: saber que resulta no fim do sofrimento, isso é ser "Buda". Conhecer o sofrimento até ser capaz de cessar o sofrimento. Por isso o chamam de "aquele que sabe", ele conseguiu encerrar o sofrimento e então despertou e ganhou clareza mental, o sofrimento não o dominava, ele era desperto, tinha a mente clara, brilhante. Vai querer saber mais o quê? Saber cessar o sofrimento deve ser suficiente, não? Mas não somos assim, queremos saber por ganância, não como o Buda. Sabemos muito, mas sabemos por ganância. Queremos ter conhecimento por ganância, então perdemos o caminho. Às vezes vêm estudar e praticar o Dhamma para ganhar algo, e se não conseguirem alcançar o verdadeiro conhecimento, vão de fato ganhar o que estão procurando. Então o Buda dizia que se alguém tiver a intenção de ir à floresta praticar o Dhamma "para" - se tiver "para" já está errado. "Para" conseguir isso ou aquilo. Ainda mais se for uma floresta distante, aí está completamente errado. Se for "para" que as pessoas o admirem e elogiem, ou "para" tornar-se isso ou aquilo. Não se pode praticar para tornar-se isso ou aquilo, ser devata ou brahma. Só pensar desse jeito já está errado, se for monges, está errado a ponto de ser uma ofensa, ser uma quebra da regra monástica(*). O objetivo está errado pois a prática é para abandonar, renunciar, como já disse. Se praticar desejando isso ou aquilo, está errado, irá caminhar errado, por isso ele proibiu. Ainda mais se for para ganhar admiração, recompensas materiais, aí está errado de verdade. Às vezes estudam mas não praticam, isso também está errado. Muitos são assim, antigamente quando eu era criança também haviam muitos. Hoje entendo a fala de Luang Pó Chah que dizia: "Andam no caminho, mas se perdem no caminho"(*), é isso mesmo. Pensam que estão andando no caminho, mas se perdem no caminho sem se darem conta. É algo a refletir para quem pratica, pensamos que somos praticantes mas nos perdemos ali, nos perdemos naquela prática. Tem que ter cuidado, não deixem a prática virar "fashion", não façam isso. Não deixe virar "fashion", vai se perder como os demais. Praticamos para abandonar, abandonar kilesas, abandonar a maldade. Se abandonamos com o corpo se chama "sīla", praticamos bem aqui. Se não abandonar, não é sīla. Pode vestir branco o quanto quiser(*), se não abandonar, não há sīla. Não importa que cor você use, se abandonar a maldade com corpo e fala, é sīla. Não importa a cor, isso é sīla de verdade, serve de verdade de medida para nossa mente. Não precisa se exibir para que os outros saibam, para que seja "fashion". A prática é para conseguir abandonar. Se a mente se aquieta, não balança, se for uma pessoa de mente sólida, forte, firme - é samādhi. Não chacoalha facilmente, a mente é firme. Não importa onde esteja, é uma pessoa que tem samādhi. Aquele que sabe refletir e contemplar, não acredita facilmente, quando ouve ou vê algo, sabe refletir e contemplar, isso é característica de quem tem paññā. Investigar e refletir, é característica de quem tem paññā. Quando ouve algo, não acredita facilmente. Toma seu tempo refletindo, investigando, contemplando por completo, antes de qualquer coisa. Quem tem sabedoria não leva prejuízo, se não tiver isso, é facilmente enganado, tome cuidado! Desejo somado à fé: ambos se misturam e a pessoa acaba acreditando fácil, se não tivermos desejo, não será fácil nos enganar. Se for enganado, que seja pouco, em coisas pequenas, cuidado para não levar golpe até não mais aguentar. Tem que treinar essa sabedoria. Prática de verdade diz respeito ao Dhamma exclusivamente, e não a um formato exterior. Isso é o modo de prática, por isso é dito que a prática deve acontecer em todas as posturas, em todas as oportunidades, a todo tempo, o Buda dizia que é "akāliko" de verdade, não tem época ou horário, só depende de praticarmos. Se olharmos, vemos que é assim mesmo. Em qualquer postura, se tivermos sati, o Dhamma nasce bem ali, sīla, samādhi e paññā nascem bem ali, onde estamos cientes de si. Então o Dhamma não escolhe época, lugar ou horário, ele é capaz de surgir a qualquer momento. Então é dito que a prática do Dhamma não é limitada nem pela postura, nem pelo horário, alguns pensam que a hora de ir ao banheiro não é hora de praticar. Isso é ter visão curta. Também é hora de prática, por quê? Desenvolver sati deve ser feito em todas as posturas. Se formos ler o que escreveram é ainda mais refinado: todos os movimentos. Quando eu estudava, li os comentários do Satipatthāna Sutta, que os mestres do passado escreveram, "ter sati acompanhando o movimento de todas as partes do corpo". Por isso em alguns lugares eles praticam fazendo tudo devagar, até eles conseguirem terminar de comer cada colherada... eles separam cada parte do movimento, isso é porque nos livros escreveram assim, então fazem tudo devagar. Mas tem que ter inteligência, ou acaba virando uma pessoa lerda; até conseguir dar cada passo, ôôô, difícil! Cuidado para não mudar de comportamento. A prática tem que ser feita com as posturas normais, conseguir que sati permaneça com as posturas normais, é o mais excelente, porque vivemos nessas posturas normais. Treinem até conseguir. Talvez comecemos praticando devagar, mas com o tempo temos que retornar à velocidade normal. Não fique preso naquele ponto, praticando por muito tempo e ainda fazendo tudo devagar daquele jeito. Se fizer rápido perde sati, então fica preso naquele ponto, fica fazendo tudo devagar. Tem que treinar para ter velocidade igual à das posturas, para poder acompanhar, para ter sati veloz. Assim a postura passa a ser um acessório para estabelecer sati, estabelecer uma fundação. Então tenham atenção, tenham mais atenção, quando tiver sati vai conseguir fazer progresso. Como dizem, algumas pessoas dirigem devagar - comparando com dirigir um automóvel - mas colidem aqui e ali, colidem o tempo todo, mesmo dirigindo devagar. Algumas pessoas dirigem rápido mas não têm problema algum. É diferente não? A habilidade de cada um é diferente. Tudo depende de acumular, de treinar. É dito qualquer carma que fizermos, torna-se nosso comportamento. Temos que praticar para permanecermos com as posturas que usamos para nos movimentar normalmente, mas tenha sati. Procure treinar sati para que ela acompanhe, para que ela tenha velocidade. Assim, onde quer que esteja, estará praticando. Treine agindo de forma normal, como Luang Pu Chah dizia, não é para ir sentar em meditação no meio do mercado, não dá, vão achar que você é doido. Treine sati, tenha sati enquanto vende as mercadorias, esteja ciente naquele momento, se não, vai dar o troco errado, não consegue acompanhar. Sati tem que ser capaz de acompanhar naquele momento. Sati-paññā. Ter sati, ter paññā, velozes, ágeis. Saber onde as kilesas surgem e saber se já surgiram, tem que saber naquele instante. Saber para largar, e larga de verdade. É só surgir "pup!", que sati "pap!", está pronta a largar naquele instante. Não precisa correr para o monastério. Se está em casa, largue em casa, esteja ciente em casa, não precisa correr para cá. Demora muito. Onde estiver, faça bem ali, pratique bem ali, encerre bem ali. Isso se chama "conseguir acompanhar". Não é para chamar: "Ajahn, me ajude!" O ajahn é o Dhamma que estudamos e treinamos. Se, pelo menos, for capaz de dizer "Que se dane!", já fica mais leve. Isso é praticar o Dhamma, onde estivermos, praticamos. Já viram o Zen? Alcançar o Dhamma não escolhe local ou horário. Durante a refeição ainda consegue alcançar o Dhamma, a gente ouve e acha estranho... Encontram o mestre no caminho, fazem uma só pergunta e alcançam o Dhamma. Zen é rápido desse jeito, iluminação imediata. Por isso tem que ter velocidade, sati tem que ser veloz, ágil. Se compararmos com a época do Buda, conseguiam ser assim aqueles que tinham acumulado pāramī, tinham desenvolvido sati por completo. Já viram? Alguns arahants não tinham muita cerimônia, viam algo e "pup!", o Dhamma se unia e "pap!", alcançava o Dhamma imediatamente. Viam a luz de uma vela, a luz do sol, só isso, enxergavam as três características e alcançavam o Dhamma imediatamente. Por que era rápido desse jeito? O Zen vem disso, tendo acumulado pāramī suficiente, por completo, tem satisampajañña, tem satipatthāna, tem uma fundação para sati em todas as posturas, está pronto a alcançar o Dhamma a todo momento. Por que alcança o Dhamma? Porque o Dhamma está pronto a todo momento, se temos sati. Basta ver um raio de sol, só isso, e ele contempla as três características: é sofrimento, é impermanente, é anatta; então trazem de volta para si mesmos: "Hum, mesmo meu corpo e mente são assim, estão sujeitos às três características, são sofrimento, impermanentes, anatta." Só isso, quando se une nesse ponto, alcançam o Dhamma, veem o Dhamma. Por isso é dito que alcançar o Dhamma não é limitado por época, não tem época ou horário. Às vezes nos deparamos com um evento e é fácil contemplar o Dhamma ali, então alcançamos o Dhamma facilmente. Conseguimos nos desapegar facilmente. Por isso ensinam: "Sempre que ver algo, contemple, tenha sati e contemple, use como um acessório para ensinar o Dhamma a si." Se soubermos olhar, conseguimos enxergar todos os Dhammas bem ali. É um Dhamma fácil, como dizia Luang Pu Chah: "Tudo é um ensinamento do Dhamma para nós, mesmo os porcos, os cães, os patos e as galinhas podem nos ensinar o Dhamma, se tivermos sati, se estamos desenvolvendo sati." Se tiver sati é "opanayiko", traz para dentro de si mesmo. Trazer para dentro de si mesmo nos faz enxergar. Vemos os outros, vemos nós mesmos e vemos o Dhamma. Eles são iguais a nós? Somos iguais a eles? Como pensamos, como eles pensam? É opanayko, traz para dentro de si. A fundação para desenvolver sati é desse jeito. Olhe para fora e olhe para dentro, é assim que ele ensinava. Quando desenvolvendo sati, o olho faz contato, olhamos o exterior e olhamos o interior. Seja opanayko sempre, sempre traga para dentro de si, não leve para fora. Levar para fora é correr atrás dos objetos mentais, se trouxer para dentro, conhecemos o objeto mental e conseguimos purificá-lo. Por isso é dito opanayko, traga para dentro. Se não tiver sati, não desenvolver sati, não consegue trazer para dentro, acaba indo para fora, a natureza da mente é assim. Então os mestres dizem para desenvolver sati, o Buda dizia para desenvolver sati, isso porque queria que nosso saber conseguísse acompanhar. Se tem sati, traz para dentro; se traz para dentro, está ciente; se está ciente, conhece. Quando estar ciente surge, conhecer surge junto: o que é apropriado, o que não é, o que é bom ou ruim, o que devemos abandonar ou desenvolver. Isto é, o Buda surge, surge de desenvolver sati, pois é o que nos alerta para que estejamos cientes de si mesmos. Quando estamos cientes, entendemos o bem e o mal, o certo e o errado, o que devemos abandonar ou desenvolver - conhecemos. Então é dito que o Dhamma traz muitos benefícios para quem o desenvolve, ou, tem muito valor, tem muito valor para quem o pratica. Então devemos desenvolver. Se tivermos isso, teremos um bom instrutor onde quer que formos. Teremos o Dhamma nos alertando, nos protegendo. É dito, se fosse um barco, é como se o timão fosse bem construído, então conseguimos controlar a direção do barco. Se o barco tem um timão, para onde o direcionarmos, ele vai naquela direção. O Dhamma é desse jeito, não está longe, está bem perto. As pessoas procuram longe e perdem muito tempo, tem que procurar aqui perto, naquilo que surge bem na nossa frente. Quando os mestres ensinam, ensinam desse jeito. Quando algo faz contato, todo dia, toda hora, é sofrimento? É felicidade? Sabemos bem aqui. Se for felicidade, nos deixamos levar? Se for sofrimento, como lidamos com isso? Olhe direto no momento presente. Só isso e já está tranquilo. Mesmo que digam que praticamos certo ou errado, ainda nos sentimos tranquilos, porque sabemos. Quem sabe melhor do que nós? Nós já sabemos, se disserem que está errado, continuamos tranquilos. Luang Pó Chah dizia, se disserem que estamos errados, ainda sorrimos, numa boa. Se disserem "certo", sorrimos, se disserem "errado", sorrimos. Deixa pensar que somos loucos. Somos assim porque sabemos, isso é sorrir por saber. Não é sorrir por não saber, como os doidos. Ambos são parecidos. Ele não sabe de nada, então também consegue sorrir. Não importa o que digam, ele sorri. Mas o sorriso dos que praticam é sorriso por saber, conhecer a si. Eles dizem "bom", "ruim", "certo", "errado", mas nós sabemos, então sorrimos. Isso é ter uma fundação, estamos confortáveis, tranquilos. Onde estivermos temos estamos confortáveis, tranquilos. Não somos arrastados por nada. Não somos arrastados, temos uma fundação. Só isso e já vemos, vemos o desenvolver ou degenerar, se praticarmos assim, vamos ver. Por isso é dito que o tempo, se praticarmos certo, será o teste. Vá praticando, praticando e verá, verá o valor da prática. Verá que fica mais leve, se ficar mais leve é porque está correto. Se estiver ficando mais pesado, está errado. Vai praticando e fica leve e tranquilo, não sofre nem se preocupa muito com nada, ou a preocupação que já existe diminui. Melhora muito. É uma prática que deu resultado. Vai saber como é. Se praticamos continuamente por um longo período, sabemos por nós mesmos, há mais bem-estar porque aprendemos mais a largar e abandonar, fica mais leve. Só isso e teremos certeza no modo de prática. Os apegos e obsessões diminuem. Antes nos apegávamos muito, cem por cento, praticando conseguimos largar, diminui, sobram 90%, 80%, 70%, 60%, 50%, verá por si, vai ver. Se ver isso: "Ah! Minha prática deu resultado." Fica muito mais leve, mesmo que não acabe, mas diminui, ficamos bem, tranquilos. Nesse ponto, não precisa acreditar em mais ninguém, acredita em si mesmo, que praticar dá resultado. Não precisa que ninguém venha dizer "Você alcançou esse ou aquele estágio", sabemos por nós mesmos, sabemos o quanto abandonamos e o quanto falta, sabemos sozinhos, ninguém precisa vir dizer. Não se engana ficando feliz com algo que não está lá. Como a história que Luang Pu Chah contou: havia um monge que era amigo dele, praticaram juntos por muito tempo mas se separaram e não se viam há muito tempo. Quando se encontraram, ele disse: "Oh, agora eu já estou tranquilo." "Por que?" Ele falava como se as kilesas já tivessem acabado, por isso estava tranquilo. Ele disse: "Fui fazer um voto de levantar a imagem do Buda no Wat Prabat. Fiz o voto 'Se minhas kilesas já acabaram, que eu consiga levantar a imagem.' E consegui, mostra que acabaram-se minhas kilesas, por isso estou tranquilo." "Ohhh, deixou na mão de um bloco de pedra! Vejam só a que ponto chegou! Toma uma pedra como ponto de referência.", disse Luang Pu Chah. Enxergam? Não tem em si mesmo, então foi deixar na mão de uma pedra, e se sentiu tranquilo, só isso. Tem que ter cuidado com isso. Isso é por não ter dado resultado de verdade. Mostra que a prática que veio realizando não melhorou a mente, não sabe abandonar e desenvolver. Se soubesse abandonar e desenvolver, saberia se ainda há (kilesas). Se diminuíram, saberia; se ainda há, saberia; se são muitas ou poucas, saberia. Isso é praticar como "aquele que sabe", o Buda. Saberemos, se olharmos de verdade, saberemos. Saberemos se ainda há muito ou pouco. Nos faz ter certeza. Já é hora de esticarmos as pernas um pouco, não?

 Notas: 
• É raro alguém perguntar sobre sotāpanna: isso foi dito em tom de ironia. Na verdade, o que ocorre é que qualquer mestre que ganha reputação como praticante do Dhamma tem que lidar com um fluxo constante de pessoas que vão procurá-lo para “avisar” que já são sotāpanna. É um engano muito comum, em geral as pessoas superavaliam suas experiências ou simplesmente leem muito os textos até acharem que não têm mais dúvidas, e portanto, estão “iluminadas”. Em 99% dos casos, o mestre tenta ajudar a pessoa a abandonar essa ilusão mas não consegue, a pessoa se recusa a ouvir pois, afinal de contas, ela já é iluminada. 
• Sakkāya-ditthi, vicikicchā, sīlabbata-parāmāsa: Os três grilhões - apego a um Eu, dúvida especulativa acerca do Buda e apego a preceitos e rituais.
• Cuia: a palavra em tailandês para “cuia” soa similar a “khandha”. • Minha conduta seria criticada pelos sábios?: uma das 10 reflexões ensinadas pelo Buda aos monges (ver Dasa Dhamma Sutta
• Melhor que ser cachorro, não?: chamar alguém de cachorro é a forma mais grave de ofensa na Tailândia. 
• Quebra da regra monástica: os monges não devem praticar como forma de exibição, para que as pessoas os admirem.
• Se perdem no caminho: há um trocadilho aqui, significa que o praticante se obceca pelo caminho e negligencia o destino. 
• Vestir branco: em certas ocasiões, leigos vestem roupas brancas para demonstrar que estão observando os oito preceitos.

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