Análise de texto

O presente artigo tem como objetivo analisar sob a luz da doutrina Budista, o texto "O ignorante", presente no livro Quem é o Mau? O Mau e Sua Salvação na Ótica do Budismo Shin, de autoria de Shuichi Maida.
Ao realizar uma leitura ainda que superficial do texto ora citado, é possível perceber alguns erros grosseiros em relação ao Dhamma. Erros estes que devem ser combatidos e corrigidos, para que assim, os ensinamentos do Buda possam ser mantidos na sua pureza. 

O Ignorante 
O que é Buda? (Desperto) É o ignorante. Ele sabe que é totalmente ignorante. Ele despertou para a própria ignorância.
O que é um iludido? É aquele que está convicto de que sabe das coisas. É aquele que ainda não despertou para o fato de que não sabe nada. Mas se houver a experiência do despertar para a sua ignorância então um iludido se transformará facilmente em um Buda.
Portanto, a distância que separa um Buda e um iludido é mínima. O primeiro é aquele que já despertou para a sua e o segundo é aquele que se considera ainda suficientemente sábio perante a vida.
Um Buda é aquele que está sempre em busca do caminho. É aquele que se considera um eterno aprendiz da vida porque existe um reconhecimento de que é completamente incapaz de conhecer a verdade e assim sempre está à procura do caminho. Por outro lado, um iludido é aquele que não se esforça na busca do caminho e no aprendizado da vida porque seu espírito está possuído de uma natureza estática e sempre estacionado em algum lugar pensando que já possuiu ou adquiriu conhecimento suficiente sobre algo na vida.
A força do Buda está no fato de seu espírito estar determinado na busca contínua do aprendizado e do verdadeiro caminho. Por outro lado, a vulnerabilidade do iludido está nele ser preguiçoso e negligente no buscar porque é condescendente , auto-suficiente “sábio”. Em suma a diferença entre os dois é aquele entre o buscador e o negligente.
Um Buda vê a si próprio como um ignorante porque compreende plenamente que não é possuidor de um conhecimento perfeito em que se poderá apoiar como uma âncora. Ele não tem nenhuma idéia fixa sobre algo e muito menos apego às coisas. Se um ignorante acreditar firmemente que é possuidor de conhecimentos estará atado na própria sabedoria. Se o astuto despertar para a realidade da vida de que não sabe absolutamente de nada se tornará um ser plenamente livre no trato com as coisas do mundo.

Análise

O que é Buda? (Desperto) É o ignorante. Ele sabe que é totalmente ignorante. Ele despertou para a própria ignorância.

Logo no primeiro parágrafo já há um grosseiro mal entendimento do que seja um Buda e suas características.
Sob a ótica dos suttas, podemos perceber o Buda como:

Aquele que transcendeu tudo, aquele que tudo conhece,
imaculado entre todas as coisas, renunciando a tudo,
libertado pela cessação do desejo.  
Majjhima Nikaya 26

“O Tathagata, bhikkhus, o Arahant, o Perfeitamente Iluminado, é aquele que fez surgir o caminho que não havia surgido, aquele que produziu o caminho que não estava produzido, aquele que declarou o caminho que não estava declarado; ele conhece o caminho, ele encontrou o caminho, ele tem habilidade no caminho. Os seus discípulos agora seguem esse caminho e eles se tornarão possuidores dessas qualidades no futuro.
Samyutta Nikaya XXII.58


“Tudo aquilo que no mundo, incluindo os seus devas, maras e brahmas, esta população com seus contemplativos e brâmanes, seus príncipes e povo é visto, ouvido, sentido, conscientizado, buscado, procurado, ponderado pela mente: tudo isso eu entendo. Tudo aquilo que no mundo, incluindo os seus devas, maras e brahmas, esta população com seus contemplativos e brâmanes, seus príncipes e povo é visto, ouvido, sentido, conscientizado, buscado, procurado, ponderado pela mente: tudo isso eu compreendi completamente; tudo isso é do conhecimento do Tathagata, mas o Tathagata não se estabelece nisso."  
Anguttara Nikaya IV.24

"Outra vez, realizando por si mesmo com conhecimento direto, o Tathagata aqui e agora entra e permanece na libertação da mente e libertação através da sabedoria que são imaculadas, com a destruição de todas as impurezas.
Majjhima Nikaya 12

Assim, ouvi. Certa ocasião, o Abençoado estava em Savatthi, no Bosque de Jeta, no Parque de Anathapindika. Agora, naquela ocasião, o Abençoado estava revisando o seu próprio abandono das percepções e conceitos nascidos da proliferação.

Então, dando-se conta do significado disso, o Abençoado nessa ocasião exclamou:

O mundo com os seus devas não menospreza o sábio liberto do desejo, em quem não há proliferações nem continuidade, tendo vencido a amarra e a barra (ignorância). 
Udana VII.7

Podemos citar também os sete fatores da iluminação, que sem eles, é impossível tornar-se um Buda.

1) sabedoria para distinguir o verdadeiro do falso,
2) energia e entusiasmo na realização do caminho,
3) alegria e contentamento,
4) calma e serenidade no corpo e mente,
5) autoconsciência,
6) concentração,
7) equanimidade ou não perturbação diante de qualquer circunstância.

Os dez poderes de um Buda também valem a pena serem citados:

1) conhecer em cada circunstância o que é correto ou não,
2) conhecer o kamma de cada ser no passado, no presente e no futuro,
3) conhecer todos os graus de libertação jhana e samadhi,
4) conhecer os poderes e faculdades de todos os seres,
5) conhecer os desejos ou moralidade de todos os seres,
6) conhecer a condição atual de cada indivíduo,
7) conhecer as consequências de todas as leis,
8) conhecer as causas da mortalidade e do bem e do mal,
9) conhecer o fim de todos os seres e o Nibanna,
10)conhecer a destruição de toda classe de ilusão.

Parece bem inadequado para alguém que apenas despertou para a própria ignorância.

No SN.XLV.1, o Buda descreve os problemas da ignorância:

“Bhikkhus, a ignorância é a precursora dos estados ruins e prejudiciais, seguida pela ausência de vergonha de cometer transgressões e pela ausência de temor de cometê-las. Para um tolo, imerso na ignorância, o entendimento incorreto surge. Naquele que possui o entendimento incorreto, o pensamento incorreto surge. Naquele que possui o pensamento incorreto, a linguagem incorreta surge. Naquele que possui a linguagem incorreta, a ação incorreta surge. Naquele que possui a ação incorreta, o modo de vida incorreto surge. Naquele que possui o modo de vida incorreto, o esforço incorreto surge. Naquele que possui o esforço incorreto, a atenção plena incorreta surge. Naquele que possui a atenção plena incorreta, a concentração incorreta surge.

Também pode ser encontrado no Itivuttaka 40 o seguinte:
"A ignorância, bhikkhus, precede e conduz aos estados prejudiciais, a falta de vergonha e do temor de cometer transgressões vêm em seguida. O conhecimento, bhikkhus, precede e conduz aos estados benéficos, a vergonha e o temor de cometer transgressões vêm em seguida."

Ora, se o mero reconhecimento da ignorância é, segundo o autor, a causa do despertar, como poderia o Buda combatê-la com tamanho rigor? E como poderia ele ser ignorante e estar desperto ao mesmo tempo? Contraditório, não?
Em poucas palavras, um Buda possui a mais perfeita sabedoria e não pode ser comparado a um ser que apenas descobriu que é ignorante. 

Prosseguindo. 


O que é um iludido? É aquele que está convicto de que sabe das coisas. É aquele que ainda não despertou para o fato de que não sabe nada. Mas se houver a experiência do despertar para a sua ignorância então um iludido se transformará facilmente em um Buda.
Portanto, a distância que separa um Buda e um iludido é mínima. O primeiro é aquele que já despertou para a sua e o segundo é aquele que se considera ainda suficientemente sábio perante a vida.

Novamente o autor confunde alhos com bugalhos e insiste em afirmar que a experiência de iluminação é o reconhecimento da própria ignorância e não a destruição da ignorância (avijja) e a purificação da mente.

Um Buda é aquele que está sempre em busca do caminho. É aquele que se considera um eterno aprendiz da vida porque existe um reconhecimento de que é completamente incapaz de conhecer a verdade e assim sempre está à procura do caminho. Por outro lado, um iludido é aquele que não se esforça na busca do caminho e no aprendizado da vida porque seu espírito está possuído de uma natureza estática e sempre estacionado em algum lugar pensando que já possuiu ou adquiriu conhecimento suficiente sobre algo na vida.

Um Buda não é aquele que está sempre em busca do caminho, ele já percorreu o caminho. Ele não é um eterno aprendiz, ele é o mestre de devas e humanos. E se conheceu a Verdade de modo direto, como ele é incapaz de conhecer a Verdade? 

Neste mundo com os seus devas, Mara e Brahma, nesta população com seus brâmanes e contemplativos, seus príncipes e povo, eu não vejo outro brâmane ou contemplativo mais consumado em virtude do que eu, ninguém na dependência do qual eu possa permanecer honrando-o e respeitando-o.
Anguttara Nikaya IV.21

  ‘O Abençoado é perfeitamente iluminado, o Dhamma é bem proclamado pelo Abençoado, a Sangha dos discípulos do Abençoado pratica o bom caminho.’
Majjhima Nikaya 89

Saber que é ignorante não lhe torna um Buda, é preciso sim conhecer as quatro nobres verdades:

`Quando meu conhecimento e visão dessas Quatro Nobres Verdades como na verdade elas são, nas suas três fases e doze aspectos, estava completamente purificado desse modo, reivindiquei ter despertado para a insuperável perfeita iluminação neste mundo com os seus devas, maras e brahmas, esta população com seus contemplativos e brâmanes, seus príncipes e povo. O conhecimento e visão surgiram em mim: ‘A libertação da minha mente é inabalável. Este é o meu último nascimento. Não há mais vir a ser a nenhum estado.’
Samyutta Nikaya LVI.11

E só para não dizerem que não citei nada do Mahayana...

“Shariputra, a sabedoria e a visão do Tathagata é vasta, ampla, profunda e de longo alcance. Ele penetrou profundamente, sem restrições, os poderes ilimitados e sem impedimentos, a coragem, a concentração em Meditação e os Samadhis da emancipação, abarcando todas aquelas Leis nunca 
antes obtidas.”
 (...)
Quando pela primeira vez tomei assento no lugar da Iluminação, 
em contemplação, ou caminhando ao redor da árvore, 
por um período de três vezes por sete dias, eu pensei em assuntos como estes: 
‘A sabedoria que obtive é sutil, maravilhosa e insuperável, 
mas os seres viventes são de pouca capacidade, apegados ao prazer e cegos pela delusão; 
seres como esses como poderão se salvar?’
Sutra do Lótus - Capítulo 2, meios hábeis. 

A força do Buda está no fato de seu espírito estar determinado na busca contínua do aprendizado e do verdadeiro caminho. Por outro lado, a vulnerabilidade do iludido está nele ser preguiçoso e negligente no buscar porque é condescendente , auto-suficiente “sábio”. Em suma a diferença entre os dois é aquele entre o buscador e o negligente.

Apenas uma repetição do parágrafo anterior utilizando outras palavras, mas que contém os mesmos equívocos.


Um Buda vê a si próprio como um ignorante porque compreende plenamente que não é possuidor de um conhecimento perfeito em que se poderá apoiar como uma âncora. Ele não tem nenhuma idéia fixa sobre algo e muito menos apego às coisas. Se um ignorante acreditar firmemente que é possuidor de conhecimentos estará atado na própria sabedoria. Se o astuto despertar para a realidade da vida de que não sabe absolutamente de nada se tornará um ser plenamente livre no trato com as coisas do mundo.

O despertar não é admitir que só sabe que nada sabe, e sim a eliminação de avijja. Não me canso de repetir, 

"O Tathagata, com sua sabedoria sem obstruções, sabe daquela extinção do Buda, dos seus Ouvintes e Bodhisattvas, como se estivesse vendo a sua extinção agora.
Monges, saibam que a sabedoria do Buda é pura, sutil e maravilhosa;
sem falhas e sem obstruções, ela penetra ilimitados kalpas.”
Sutra do Lótus - Capítulo 7. A parábola da cidade fantasma

Conclusões

O texto apresentado é um verdadeiro desserviço ao ensino do Dhamma, pois é bastante claro o quanto ele é contraditório em relação ao cânone budista e demonstra o total desconhecimento do autor quanto às qualidades de um Buda.
O caminho do Buda é o caminho da sabedoria, não da ignorância. Reconhecer que você não está iluminado e ainda é ignorante é um passo importante, porém não é o fim. A prática para a iluminação, como foi demonstrado através dos sete fatores de iluminação, é algo complexo, que envolve um grande esforço e que culmina com a remoção de avijja da mente (citta) e assim eliminar todas as visões erradas quanto a verdadeira natureza dos fenômenos. O que é algo muito distante de apenas conseguir reconhecer seu estado de ignorante e passar a vida no caminho em busca de sabedoria. 
Infelizmente ideias heterodoxas como estas têm profunda penetração entre os brasileiros, principalmente por quase não terem acesso ao cânone budista, seja do Theravada ou do Mahayana, e pela falta de bons mestres, tendo como principal fonte de estudo do Budismo, livros de monges de reputação duvidosa, Osho e magos new age
É, literalmente, uma era de decadência do Dhamma. 

Comentários

  1. Parabéns, Eurico Braga, gostei de sua crítica coerente, justa e bem fundamentada nos suttas. Combater possíveis distorções dos ensinamentos do Buda é algo muito nobre. O próprio Buda, segundo o cânone Páli, dava uma advertia aos discípulos que distorciam seu ensinamento (o Dhamma). Penso que você está fazendo progresso nos seus estudos sobre o Budismo. continue assim. Abraço.

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O que fazer quando se quebra um preceito?

Angulimala, a história de um assassino até a Iluminação

O estágio de Sotapanna - Como alguém pode saber se foi alcançado?