As múltiplas facetas da vacuidade dos fenômenos
O Budismo enxerga o universo (a natureza como um todo) através de três qualidades fundamentais que regem todos os fenômenos. São elas:
A qualidade da impermanência (anicca), é a incapacidade de mantermos as coisas para nossa satisfação. Todos os fenômenos físicos e mentais possuem esta característica. Eles surgem perduram por um tempo e então mudam ou desaparecem. O apego e a busca por eles para ser feliz é inútil, a partir dai surge dukkha...
A qualidade da insatisfação (dukkha), derivada da ignorância da primeira qualidade.
Queremos que as coisas boas sejam eternas e sempre do jeito exato que queremos, contudo, o universo não funciona assim. Desejamos algo e nos apegamos a este desejo e também ao objeto desejado, isso gera sofrimento, insatisfação e dor, pois nem sempre é possível obter o que almejamos, E mesmo que consigamos o que queremos, o objeto adquirido é impermanente e um dia irá se extinguir.
Dukkha está em tudo, o próprio nascimento já é dukkha. A dor permeia o coração dos seres.
Fome, violência, miséria, doenças, morte, envelhecimento e até mesmo pequenas irritações, tudo isto é dukkha.
Queremos que as coisas boas sejam eternas e sempre do jeito exato que queremos, contudo, o universo não funciona assim. Desejamos algo e nos apegamos a este desejo e também ao objeto desejado, isso gera sofrimento, insatisfação e dor, pois nem sempre é possível obter o que almejamos, E mesmo que consigamos o que queremos, o objeto adquirido é impermanente e um dia irá se extinguir.
Dukkha está em tudo, o próprio nascimento já é dukkha. A dor permeia o coração dos seres.
Fome, violência, miséria, doenças, morte, envelhecimento e até mesmo pequenas irritações, tudo isto é dukkha.
A qualidade daquilo que não é o eu (anatta), talvez a qualidade mais difícil de ser entendida e eliminada. Anatta refere-se a vacuidade dos fenômenos, ou seja, são vazios de essência. Tudo o que existe depende de uma cadeia infinita e complexa de causas e condições. Sem as condições apropriadas, um determinado fenômeno é incapaz de existir.
Nós humanos, somos, por exemplo, apenas a união de cinco agregados, que uma vez desorganizados, fazem cessar a existência de um ser. E isso se aplica a qualquer outro ente vivo ou objeto.
Portanto, um ser humano só existe devido a inúmeros fatores genéticos, ambientais e até astronômicos. Sem tais fatores, seria impossível o homem existir e a natureza seguiria seu curso normalmente, impassível ao ego criado pelas nossas mentes deludidas, focadas na egocentridade antropocêntrica.
Como podem perceber, não existe algo como alma individual. Se eu digo que possuo uma alma que carrega comigo todas as qualidades (manifestadas ou não) do meu ser, então estarei caindo no conceito dualista e impossibilitando minha iluminação, uma vez que minha mente deludida insiste em separar os fenômenos entre "meu", "seu", "eu", "você", "isto", "aquilo", esquecendo que no nível mais fundamental, não há nenhuma distinção entre as coisas.
Sendo assim somos incapazes de possuir ou controlar qualquer coisa que seja. Qualquer tentativa de incutir um Eu e controlar a vida será frustrada e acarretará em dukkha.
Sendo assim somos incapazes de possuir ou controlar qualquer coisa que seja. Qualquer tentativa de incutir um Eu e controlar a vida será frustrada e acarretará em dukkha.
Explorando anatta
Personalidade, ego e essência
O ser humano é composto destes três aspectos psicológicos principais:
Personalidade
Chamada no Budismo de pudgala-atma, é um veículo de manifestação de estados interiores. A palavra personalidade vem do grego “persona”, que significa “máscara”. É aquilo que mostramos ao mundo e aos outros a cada momento. Assim como passamos por diversas situações no dia-a-dia, utilizamos máscaras diferenciadas. Por exemplo: um homem que utiliza sua “máscara” de médico no trabalho; de pai e esposo no lar; etc.
Na Personalidade estão todas as coisas que nos foram “emprestadas”, tais como: nome, costumes, as tradições, a cultura, a língua, o cargo social, etc.
Dizemos que isso nos foi emprestado porque, por exemplo, se tivéssemos nascido em outro país ou outra época, teríamos outro nome, falaríamos outra língua, e assim por diante. É correto afirmar que a personalidade surge de fora para dentro, sempre derivada de fatos condicionados, portanto, não é a nossa real essência, luminosa, incondicionada e indescritível.
A Personalidade se forma durante os primeiros sete anos de vida e se robustece com as experiências, podendo ser modificada através de esforços conscientes, porém não ao acaso.
Ou seja, pudgala é apenas um conjunto de agregados, são características que temos devido a uma série de causas e condições mas que, individualmente, são vazias de substância real. Nós habitualmente chamamos as características de nossa personalidade de “eu” ou “meu”, mas isso não é real.
Essa personalidade cessa com a morte, os agregados se desorganizam e geram novos seres e novos fenômenos.
Como seres humanos, somos uma ínfima parte do Todo. A vida do universo se manifesta através de nós, mas não estamos separados dela, como uma substância real.
Ego
O eu ilusório fabricado pela mente tendo como base pudgala,
É desse eu ilusório que surge o Ego, raiz de todo sofrimento. Ele é responsável pelo egoísmo, ganância,vícios, fraquezas e toda a sorte de maus hábitos. É ele quem nos tira da realidade, pois não faz parte da natureza instríseca do ser, que é essencialmente pura.
Contudo, não deve-se exterminar o ego, ele faz parte da consciência e não devemos nos apegar a ele e nem odiá-lo e sim apenas aceitar sua existência.
Essência
No Budismo, principalmente na escola Mahayana, a essência de tudo o que existe é a Natureza Búdica, conhecida também por Tathagathagarbha.
Já no escola Theravada, a essência de um ser é a citta, o coração, que é a essência conhecedora.
Já no escola Theravada, a essência de um ser é a citta, o coração, que é a essência conhecedora.
Segundo este primeiro conceito, a Natureza Búdica permeia todo o universo, nada está fora dela ou apresenta ausência dela.
Desde as maiores estruturas do universo até partículas quânticas, tudo está permeado com a Natureza Búdica.
Pode-se então perguntar: se os homens possuem esta natureza iluminada que apresenta todas as qualidades de um Buda, por que temos tantos problemas?
Os problemas surgem da ignorância. Nossa consciência é condicionada e carrega apenas o potencial, as sementes da Natureza Búdica, e seguindo a infalível Lei do Kamma, Tathagathagarbha só se manifestará quando houverem condições favoráveis para tal.
Mesmo com as melhores sementes, não se espera uma grande e farta colheita em um solo estéril e contaminado.
Da mesma forma, não se espera a Iluminação de uma mente repleta de obscurações (Kilesas).
Segundo Rev. Dharmananda, O termo Tathagata-garbha é também usado como sinônimo de “atman ou atta” (no sentido do verdadeiro Atman Universal, em contraposição ao falso conceito de atman individual ao qual o Budismo contrapõe o conceito de anatman) e gotra (no sentido de coletividade ou família, que engloba a todos os seres e a todos os fenômenos). Ele prossegue:
"Os prthagjana (páli: puthujjana) são os seres vulgares, ou seja, aqueles que ainda não adentraram nenhum dos estágios do Arya-Marga (nobre caminho). Esse grupo pode se Iluminar desde que abandone seu estado de ignorância adquirida (agantuka-klesa) e adentrem nos estágios do Arya-Marga. Buda disse que seus ensinamentos não eram dirigidos aos prthagjanas, mas somente aos Arya (nobres). Abaixo dos prthagjana estão os “agotra” (fora da coletividade ou da família de seres com capacidade para manifestar a própria Natureza Original), ou seja, aqueles cujo acúmulo de agantuka-klesa é tão pesado que impossibilita efetivamente a manifestação do Tathagatha-garbha. Esses seres são denominados icchantika. Os icchantika não se arrependem de seus erros, são apegados às visões errôneas, praticam o mal sem nenhum problema de consciência e, grande parte das vezes, são renitentes e cruéis criminosos. Nos icchantika, as causas e condições para a manifestação da Natureza Búdica estão ausentes. As sementes da budeidade estão plantadas em concreto, ou seja, estão presentes mas não tem nenhuma condição para se manifestar."
Já a respeito da citta na visão Theravada, segundo Ajahn Maha Bua ela é a natureza essencialmente conhecedora da mente. Consiste na consciência pura e simples: a citta simplesmente sabe. A consciência do bem e do mal, e os julgamentos críticos que resultam, são meramente atividades da citta. Às vezes, essas atividades podem se manifestar como atenção plena; outras vezes, sabedoria. Mas a verdadeira citta não exibe quaisquer atividades ou manifesta qualquer condição. Apenas sabe. As atividades que surgem na citta, tais como a consciência do bem e do mal, ou felicidade e sofrimento, ou louvor e culpa, são todas as condições da consciência que brotam da citta. Uma vez que representa atividades e condições da citta que, por sua própria natureza, surgem e cessam constantemente, esse tipo de consciência é sempre instável e não confiável
Ainda assim, o conhecimento essencial da mente da pessoa comum é muito diferente do conhecimento essencial de um Arahant. A natureza conhecedora da pessoa comum é contaminada de dentro. Arahants, sendo khioāsava, estão livres de toda contaminação. Seu conhecimento é uma consciência pura e simples, sem qualquer adulteração. A consciência pura, desprovida de todos os contaminantes, é a consciência suprema: uma qualidade verdadeiramente surpreendente de saber que concede a felicidade perfeita, como convém ao estado de absoluta pureza do Arahant. Essa felicidade suprema permanece sempre constante. Nunca muda ou varia como fenômenos condicionados do mundo, que são sempre sobrecarregados com anicca, dukkha e anattā. Tais características mundanas não podem entrar na citta de alguém que a purificou até que esteja absolutamente pura.
A citta forma o próprio fundamento do samsāra; é a essência do ser que vagueia do nascimento ao nascimento. É o instigador do ciclo de existência e o motor principal no ciclo de nascimento e morte repetidos. Samsāra é dito ser um ciclo porque a morte e o renascimento recorrem regularmente de acordo com a lei imutável do kamma. A citta é governada pelo kamma, por isso é obrigada a girar perpetuamente neste ciclo seguindo os ditames do kamma. Enquanto a citta permanecer sob a jurisdição do kamma, este será sempre o caso. A citta do Arahant é a única exceção, pois sua citta transcendeu completamente o domínio do kamma. Uma vez que ele também transcendeu todas as conexões convencionais, não há um único aspecto da realidade relativa, convencional que possa se envolver com a citta do Arahant. No nível de Arahant, a citta não tem absolutamente nenhum envolvimento com nada.
Uma vez que a citta esteja totalmente pura, ela simplesmente sabe de acordo com sua própria natureza inerente. É aqui que a citta alcança sua culminação; Ele atinge a perfeição no nível da pureza absoluta. Aqui a migração contínua de um nascimento para o outro finalmente chega ao fim. Aqui, a jornada perpétua dos reinos mais elevados da existência para os inferiores e de volta, através do ciclo repetitivo de nascimento, envelhecimento, doença e morte, cessa totalmente. Por que cessa aqui? Porque esses elementos ocultos e profanadores que normalmente permeiam a citta e fazem com que ela gire ao redor foram completamente eliminados. Tudo o que resta é a citta pura, que nunca mais experimentará o nascimento e a morte.
Outros conceitos importantes utilizados nas duas grandes escolas para o entendimento do corrente tema:
Paramatmam (Mahayana)
É o verdadeiro eu, desprovido de toda contradição. É essencialmente a natureza última da toda a realidade.
Aquilo que chamamos de "atman" (eu ou "self"), na verdade é uma ilusão. Não passa de uma personalidade condicionada por causas e condições, fenômenos desprovidos de essência real (anatta).
Essa é a mesma doutrina do Tathagatagarbha e do Brahman.
A falta de um ego é característico de Paramatman. Toda personalidade e individualidade desaparecem.
Jiva (Mahayana)
Vida, Princípio Vital, Alma Individual. ‘Alma (vida) e corpo são idênticos’ e ‘Alma e corpo’ são diferentes, essas duas são mencionadas frequentemente como visões erradas e são colocadas como os dois tipos de Crença-na-Personalidade (sakkaya ditthi; v. ditthi), i.e., o primeiro sob a Crença Aniquilacionista (uccheda-ditthi) e o segundo sob a Crença Eternalista (sassata-ditthi). (Dicionário Budista - Manual de termos Budistas e doutrinários. Nyanatiloka)
Bhava (ambas)
É o ato do surgimento de uma consciência através de uma ação mental. O próprio ser/existir derivado do apego e do desejo por ser e por existir.
Fazendo uso do Kamma, Bhava gerará um novo nascimento (jati) e uma nova consciência se manifestará em um óvulo fertilizado (na pós morte) ou em um novo estado mental (durante a vida). Também pode ser gerado nascimento no reino da matéria sutil (rupa-bhava) e no reino da existência imaterial (arupa-bhava).
Abahava (ambas)
É o oposto de Bhava, significa não-ser/não existir. A contemplação do vazio, do nada.
Um ser possui estas duas características, ser e não-ser, onde o potencial de ambos coexistem entre si.
O filósofo advaita Nisargadatta fala alguns pontos interessantes sobre a existência e não-existência:
"Existência e não-existência são relacionadas a algo no espaço e no tempo, aqui e agora, aqui e ali, que estão todos na mente. Existir significa ser algo, um objeto, um pensamento, um sentimento, uma ideia. Toda existência é particular. Somente o ser é universal. Existências se chocam, o ser nunca se choca. Existência signifca se tornar, mudar, nascer e morrer, e renascer novamente, enquanto o ser está em uma silenciosa paz. Toda existência no espaço e no tempo é limitada e impermanente. Aquele experimenta a existência é também limitado e impermanente. Eu não estou tão preocupado com o que existe ou com quem não existe, eu vejo além, onde eu sou ambos e nenhum. Não associe a mera existência como a realidade. Existência é temporária, enquanto a realidade é imutável e onipresente. A existência é na consciência, enquanto a sua essência independe de consciência para ser. Negue a existência de tudo, exceto do ser."
Punarbhava (ambos)
É o renascimento de uma nova consciência em um novo corpo de acordo com o Kamma gerado por uma consciência anterior.
Brahman (Mahayana)
Texto retirado na íntegra do link: http://chakubuku-aryasattva.blogspot.com.br/2010/07/o-que-e-brahman.html Autoria: Reverendo Dharmananda.
Nota: Embora não seja usado no Theravada, achei interessante postar aqui.
O “budismo moderno” não usa este termo. Afinal sua correta compreensão demanda um esforço intelectual que não está na “agenda” dessas pessoas. Nenhum “monge” moderninho vai saber explicar o que é Brahman e muito menos qual é seu papel dentro do pensamento budista.
Muitos confundem “Brahman” com “Brahma”, mas os conceitos são completamente diferentes. “Brahma”, na mitologia védica é o criador do universo, uma das pessoas da “trindade” Indiana composta por Brahma, Vishnu e Rudra (outro nome de Shiva, que pode também ser chamado de “Maheshvara” ou outros nomes como Ishana, Ghora etc).
A palavra “Brahma” pode ser usada para caracterizar um sacerdote, uma vez que os atos rituais que ele executa são atos que repetem a criação de um tempo e espaço fora do tempo e espaço profanos, repetindo infinitamente o “tempo primordial”. Brahma é a pesonificação de toda potência criadora, assim como do próprio ato de criar em si. No entanto, é necessário lembrar que “criação” é condicionada a causas e condições que, por sua vez, estão ligadas às outras potencialidades representadas por Vishnu (conservação) e Shiva (destruição).
O ciclo representado por Brahma, Vishnu e Shiva é ininterrupto e inseparável.
A trindade Hindu responsável pela criação, manutenção e destruição do universo: Shiva (E), Vishnu (C) e Brahma (D). |
O ato criador de Brahma só é possível através da potencialidade de conservação dos fenômenos representados por Vishnu que, por sua vez, só podem acontecer graças ao processo de destruição personificado por Shiva. Da mesma forma, a destruição representada por Shiva depende do poder de conservação representado por Vishnu e da potencialidade criadora personificada em Brahma. Tais conceitos foram conservados no Budismo por um longo tempo. Prova disso é que essas personificações chegaram ao Japão junto com o Budismo.
Brahma é “Bonten”, a leitura de “Fan-t’ien”, a transcrição chinesa de Brahma.
Vishnu é comumente referido como “Narayana” (um de seus nomes), lido como “Naraen”, também “Naraen Kongô”. Narayana é representado como um dos dois “Nioo”, aqueles guardiões poderosos colocados nas portas dos templos. Naraen, fica à direita (o outro é “Mishaku Kongô”).
Shiva é chamado de “Ishanaten”, transcrição da leitura chinesa “I-she-na-t’ien”.
Feitas essas observações, passemos agora ao tema principal: o conceito de Brahman dentro do Budismo. A palavra “Brahman” vem da raiz “brh”, ou seja “para expandir”.
Brahman é a Realidade Última de todas as coisas que por sua vez, é UNA (não dual- advaya), ou seja, é a natureza real de tudo, tanto do condicionado, quanto do incondicionado.
Não há nada separado de Brahman, não existe uma realidade fora de Brahman e outra realidade dentro de Brahman. O que existe é “maya”, ou seja, a ilusão criada dentro de nossa interpretação da realidade que, em si mesma é vazia, e Brahman, a realidade toda penetrante.
Podemos dizer, em uma terminologia filosófica ocidental, que há duas “realidades”:
- A realidade “ontológica”, ou seja, aquilo que é captado pelos sentidos, que é sujeito às nossas inferências lógicas e às nossas interpretações (também condicionadas pelos sentidos), válidas como um mecanismo de interação com o que nos cerca;
-A Realidade Ôntica, ou seja, a verdadeira realidade, que está manifesta tanto no que é condicional quanto no incondicionado.
Desse ponto de vista, a realidade ontológica é maya. Isso não quer dizer que ela “não existe”, ou que os mecanismos da lógica e da fiabilidade dos discursos devam ser abandonados, como querem os partidários do “zen” e de outras ideologias sem pé nem cabeça como o taoísmo.
Nós somos limitados pelos nossos sentidos que, por sua vez, são condicionados, assim como nós, enquanto indivíduos ou personalidades (pudgala) somos condicionados. Sendo assim, nosso único meio fiável de interação com aquilo que nos cerca (que também é condicionado) é através da utilização de critérios empiricamente fiáveis e razoáveis.
Se meus sentidos me informam que estou na linha do trem, que há o ruído do apito do trem e que lá adiante vem o trem, não vou me colocar na linha de ferro para provar que o trem é uma “ilusão” e que nada vai acontecer. Se eu fizer isso, vou ser despedaçado pelo trem.
Da mesma forma, não vou dizer que uma cadeira é o bispo*, pois meus sentidos estão me informando que aquilo é uma cadeira. Se abandono tais critérios de fiabilidade, abandono todo o contato com aquilo que me cerca e crio uma fantasia alternativa.
*Nota: Provavelmente o autor estava se referindo a ele mesmo, já que é um bispo em sua instituição.
*Nota: Provavelmente o autor estava se referindo a ele mesmo, já que é um bispo em sua instituição.
No entanto, devo saber que tudo o que me é informado pelos meus sentidos não tem uma “Realidade” no sentido de que sejam entes separados de todo o resto e que tenham uma “essência própria”, mas que são manifestações transitórias e vazias de essência (anatman), condicionadas por uma cadeia infinita de causas e condições.
Além disso, minha própria capacidade de perceber essas causas e condições é limitada, uma vez que meus sentidos são condicionados e limitados por uma cadeia de condicionantes que influenciam diretamente aquilo que denomino “percepção da realidade”. Isso é o que o Budismo chama de “Shunya” ou “vacuidade”.
Um monte de gente adora falar em “vazio” e em “vacuidade” (os tibetanóides e seus lamas que o digam…), mas quase ninguém entende verdadeiramente o conceito. A ‘vacuidade’ é exatamente a ausência de essência real dos fenômenos percebidos. Tudo aquilo que chamamos de “isso”, “aquilo”, “este”, “aquele” ou que afirmamos que “é” ou que “não é”, na realidade, é apenas uma manifestação transitória de uma cadeia infinita de fenômenos causais e condicionais que, por sua vez, também são frutos de infinitas cadeias de fenômenos causais e condicionais, que, por fim, são conduzidos ao vazio essencial (no sentido aristotélico de essência).
Quando Buda emprega a palavra “anatman” ou “aquilo que não é atman”, é exatamente para definir a vacuidade de todos os fenômenos percebidos pela mente deludida, imersa em ‘maya’.
Buda não estava advogando o niilismo materialista, ou a idéia de que a vida não vale nada e que, portanto, o bom mesmo é a extinção total, como advogam os theravadins ou os materialistas de toda espécie que formam o “budismo” de hoje. Buda estava utilizando uma “via negativa”, de esvaziamento de conceitos, para demonstrar que aquilo que nossos sentidos comuns percebem não é a essência absoluta da Realidade ou a Verdadeira Realidade.
Aquilo que chamamos de “eu” é condicionado. “Eu” sou o fruto de uma imensa sobreposição de fatores. Aquilo que chamo ‘eu’ é, na verdade, a manifestação transitória de uma forma de vida. A vida se manifesta em todo o Universo. Vida, em sentido amplo, é a ação, é o dinamismo constante das forças, do movimento, da manifestação. É aquilo que é representado pelos três deuses que citamos no início de nosso texto.
“Eu” sou apenas o fruto de uma cadeia ininterrupta de fenômenos, causas e condições que deram origem ao nascimento de um ser. Com o nascimento, outras cadeias de causa e efeito (karma) se iniciaram e cada uma dessas cadeias e cada um de seus pequenos elos, fazem parte daquilo que chamo “eu”.
Minha personalidade (pudgala) é condicionada por fatores genéticos, pelo meio em que vivi e vivo, pelo que comi e como, pela conformação de meu cérebro, pelo funcionamento de meu organismo, pelo atavismo, pela educação que recebi, enfim, por incontáveis fatores. No entanto, todos esses fatores são também condicionados, ou seja, nenhum deles tem uma essência separada, nenhum está, nem poderia subsistir, separado de todos os outros. Sozinhos, eles são irreais, vazios, desprovidos de substância. Sendo assim, aquilo que chamo de “personalidade” (pudgala) é vazia, irreal, transitória, efêmera, é “anatman”(ou seja, não é o “atman”).
Quando morremos, nossos agregados se desorganizam, deixam de formar um sistema coerente, se unem a outros sistemas. Os elementos de nosso corpo se decompõem, se unem a outras formas de vida, se tornam alimento, a água evapora, os ossos se transformam e se reagrupam a outros elementos, formando minerais, sofrendo transformações físico-químicas propiciadas pela temperatura, pela umidade etc. Enfim, tudo aquilo que chamamos de ‘eu’ não mais existe. Nada sobra. Não há “consciência” separada do cérebro, não há nenhuma “reencarnação”, nada há para “reencarnar”. Tudo é anatman.
No entanto, a Vida do universo nunca para. A extinção de uma vida é, na verdade, a mera extinção de uma pequena, efêmera e insignificante manifestação da Vida como um todo. O que se extingue é a forma, as sensações, as percepções, diferenciação e o conhecimento (formado pela nossa possibilidade de “interpretar” a realidade), mas aquilo que integra o Todo nunca se extingue, se reagrupa, retorna, se compõe novamente. Ainda que tudo se extingua, ainda que a Terra inteira desapareça, os eternos atos de criação, manutenção e destruição continuam, ininiterruptamente. Aquilo que é “nossa” vida, é a Vida do todo. Não há separação entre essa vida que está “dentro” de mim e a Grande Vida que pulsa em todo o Universo. A separação, a dualidade, só existe em minha mente deludida, que teima em classificar essa pequena manifestação a que chamamos de “eu” como um ente separado, com essência própria.
Aquilo que está “dentro” de mim, na verdade não está “dentro”, é apenas manifestação do que está em tudo, e do qual tudo é manifestação, do qual tudo é emanado e do qual essa pequena vida é manifestação. Isso é Brahman.
A consciência plena disso é a própria essência da Iluminação de todos os Budas. A identificação e extinção do “pequeno eu” é a revelação do Atman Supremo, o Brahman sem início, nem fim, indefinível e indecifrável.
Veja o que está nos sutras:
"Sabedoria é a alma, é tornar-se Brahman".
Minha alma é meu refúgio , nenhum outro refúgio existe".
“O que é condicionado é sacrificado (consumido no fogo) ao incondicionado. Este é o significado de (da palavra) Jhana (i.e. samadhi)”. [Pati 1.70]
"O Senhor, o Buda, é Aquele (Brahman) que faz a roda de Brahman (Brahmacakka) mover-se (o “motor imóvel” Atman)". [Itivuttaka #123]
"A Alma é ter-se tornado Brahman". [MN 1.341]
“O Buda é um mestre do não-dualismo (advayavadin [i.e. Advaita])”. [Mahavyutpatti; 23: Divyavadaana. 95.13]
Quem conseguue compreender as obras de Nagarjuna vê claramente o que ele queria dizer com “Madhyamaka”: Nem o caminho do niilismo, nem advogar a existência de uma “alma-personalidade” separada.
Há algum tempo atrás, vi os comentários de usuários do orkut tirando sarro dos meus textos dizendo que sou um louco por dizer que o Budismo e o Advaita são, essencialmente, a mesma coisa. Sinceramente, não tenho saco para debater com idiotas. No entanto, para esclarecimento dos respeitáveis leitores desse blog, reitero: Budismo é uma forma de pensamento Advaita.
Os brâmanes que diziam que Shankara era “cripto-budista” sabiam muito bem do que estavam falando. Eles (brâmanes), advogavam a visão errônea de uma “alma-personalidade”, e Shankara havia provado o não-dualismo, ou seja, estava defendendo exatamente a mesma posição do Budismo mais ortodoxo.
Shankara não atacou apenas os brâmanes de diversas escolas filosóficas, mas atacou também escolas budistas que, já naquela época (aproximadamente séc. IX), começavam a se desviar dos ensinamentos originais de Buda e dos sábios budistas.
Um ramo dos “Shunyavadins” defendiam o extremo de que “nada existe” e que o mundo é apenas uma aparência (bem ao estilo de certos “budistas” de hoje).
Os “Vijñavadins-Yogacharins” diziam que a realidade e tudo o mais só existe na mente, ou seja, que o mundo é apenas uma projeção da mente (também já ouvi isso por aqui).
Ambos, tantos os “Shunyavadins” quanto os “Vijñavadins-Yogacharins” eram considerados mahayanistas.
Por outro lado, haviam os hinayanistas Sarvastivadins. Eles se dividiam em dois ramos: Os “Vaibhasikas”, que afirmavam que a realidade pode ser percebida diretamente (vahya pratyaksha-vada), ou seja, pelos sentidos, como quem percebe uma barata correndo pelo banheiro; Os “Sautantrikas” que afirmavam que a realidade só pode ser inferida por meio de conceitos lógicos (vahya anumeya-vada), enumerações etc.
O que Shankara disse Nagarjuna já tinha demonstrado em seu comentário “Sobre a Interpretação do Mahayana” (Ch. Shih mo-ho-yen-lun; Jpn. Shaku makaenron), mais especificamente no fascículo 5, onde ele diz que a “realidade última da Iluminação só pode ser expressa como o “Advaita Mahayana” (Ch. pu-erh mo-ho-yen; Jpn. Funi makaen).
Ou seja, até o termo “Advaita” é usado claramente, coisa que os mongolóides do orkut não sabem e, por isso, como hienas, ficam rindo e cantando “sabedoria” para o circo de imbecis que compõem aquelas comunidades ridículas. Por essas e outras, tome cuidado com o que lê por aí, especialmente entre “redes sociais” que são uma fiel amostra de completa ignorância geral nessa Era de Decadência do Dharma.
O que o pensamento Advaita afirma é: “Brahman satyam jagat mithya” – Só Brahman tem realidade essencial, o mundo é desprovido de tal realidade.
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