Origem Dependente. A Lei Budista da Condicionalidade - Parte 1
Nesta sequência de artigos composta por dez partes, o Venerável P.A. Payutto nos brinda com uma clara e abrangente explanação de um dos temas mais importantes do Budismo, a origem dependente.
Introdução
O ensinamento da interdependência causal é o princípio Budista mais importante. Ele descreve a lei da natureza existente como o curso natural das coisas. O Buda não era um emissário de mandamentos divinos, mas o descobridor desse princípio da natureza e o proclamador dessa verdade para o mundo.
A progressão de causas e condições é a realidade que se aplica a todas as coisas desde o meio ambiente natural, que é uma condição física, externa, até os eventos das sociedades humanas, os princípios éticos, os eventos da vida e a felicidade e sofrimento que se manifestam nas nossas mentes. Esses sistemas de relação causal são parte da mesma verdade da natureza. Nossa felicidade dentro desse sistema natural depende de termos o conhecimento de como ele funciona e de agirmos corretamente dentro dele ao abordarmos os problemas nos níveis pessoal, social e ambiental. Pelo fato de todas as coisas estarem interconectadas e afetarem umas às outras, o êxito em lidar com o mundo consiste em criar harmonia dentro dele.
Costuma-se dizer que as ciências, que evoluíram junto com a civilização humana e que influenciam as nossas vidas de maneira tão profunda na atualidade, estão baseadas na razão e na racionalidade. O seu repositório de conhecimentos foi acumulado através da interação com essas leis da condicionalidade. Mas a busca humana pelo conhecimento nos campos da ciência moderna possui três características notáveis: primeiro, a busca pelo conhecimento nessas ciências e a aplicação desse conhecimento estão separadas em categorias distintas. Cada ramo da ciência é distinto dos demais. Segundo, os seres humanos nas civilizações atuais acreditam que a lei da condicionalidade se aplica apenas ao mundo físico, não ao mundo mental ou aos valores abstratos, como por exemplo a ética. Isso pode ser observado até mesmo no estudo da psicologia, que tende a olhar para o processo de causa e efeito apenas em relação aos fenômenos físicos. Terceiro, a aplicação do conhecimento científico (das leis da condicionalidade) é dirigida exclusivamente para satisfazer interesses egoístas. Nosso relacionamento com o meio ambiente, por exemplo, está centrado no esforço de extrair dele tantos recursos quanto possível, com pouca ou nenhuma consideração para com as conseqüências.
Por trás de tudo isso, tendemos a interpretar conceitos como a felicidade, liberdade, direitos, independência e paz, de modo a preservar interesses próprios e abusar dos interesses dos outros. Mesmo quando o controle sobre outras pessoas passa a ser visto como uma ação censurável, essa tendência agressiva passa então a ser dirigida em outras direções, tal como o meio ambiente. Agora que estamos começando a compreender que é impossível na realidade controlar outras pessoas ou outras coisas, o único sentido que resta na vida é preservar os interesses próprios e proteger os direitos territoriais. Ao vivermos dessa maneira, com essa compreensão falha e crenças equivocadas, colocamos o meio ambiente em desequilíbrio, a sociedade entra em convulsão e a vida humana fica desorientada, tanto física como mentalmente. O mundo parece estar repleto de conflito e sofrimento.
Todas as facetas da natureza – o mundo físico e o mundo humano, o mundo das condições (dhamma) e o mundo das ações (kamma), o mundo material e o mundo mental – estão conectados e inter-relacionados, eles não podem ser separados. A desordem e a anormalidade num setor irão afetar os outros setores. Se quisermos viver em paz, temos que aprender a viver em harmonia com todas as esferas da natureza, tanto internas como externas, o individual e o social, o físico e o mental, o material e o imaterial.
Para criar a verdadeira felicidade é da maior importância que não somente reflitamos sobre a inter-relação de todas as coisas na natureza, mas que também nos vejamos com clareza como um sistema de relações causais, como parte da natureza, tornando-nos conscientes primeiro dos fatores mentais internos, em seguida dos fatores das nossas experiências de vida, da sociedade e por fim do mundo à nossa volta. É por isso que em todos os sistemas de relação causal baseados na lei “Com o surgimento disso, aquilo surge; Com a cessação disto, aquilo cessa,” os ensinamentos Budistas principiam e sempre enfatizam os fatores envolvidos na criação do sofrimento situados na consciência do indivíduo – “porque há ignorância, surgem as formações.” Uma vez que esse sistema de relações causais seja compreendido no nível interno, estaremos então em posição de ver as conexões entre esses fatores internos e as relações causais na sociedade e no meio ambiente natural. Essa é a abordagem adotada neste livro.
(...)
Que o conjunto de intenções benéficas de todos aqueles envolvidos na produção deste livro sirva para desempenhar um pequeno papel na criação do bem-estar, tanto individual como social, no mundo de uma forma geral.
1. Uma visão geral da Origem Dependente
O princípio da Origem Dependente é um dos ensinamentos Budistas mais importantes e único. Em muitos trechos do Cânone em Pali, ele foi descrito pelo Buda como uma lei da natureza, uma verdade fundamental que existe independente do surgimento de seres iluminados:
“Havendo ou não o surgimento de Tathagatas essa propriedade se mantém – essa regularidade do Dhamma, essa ordenação do Dhamma, essa condicionalidade isto/aquilo.“O Tathagata desperta de forma direta para isso, penetra isso. Despertando de forma direta e penetrando isso, ele o explica, ensina, proclama, estabelece, revela, analisa, elucida. E ele diz,‘Vejam, bhikkhus, do nascimento como condição, o envelhecimento e morte [surgem].“Portanto, bhikkhus, a realidade disso, a infalibilidade, o que não é de outra forma, a condicionalidade isto/aquilo: a isto se chama origem dependente.”[SN.II.25](SN.XII.20)
Os excertos a seguir indicam a importância que o Buda atribuía ao princípio da Origem Dependente:
“Quem vê a origem dependente vê o Dhamma; quem vê o Dhamma vê a origem dependente.” [MN.I.191](MN 28)
* * *
“Ao invés disso, bhikkhus, o nobre discípulo bem instruído tem conhecimento disso que é independente dos outros: ‘Quando não existe isso, aquilo não existe; com a cessação disso, aquilo cessa. Quando não há ignorância, as formações volitivas não surgem. Quando não há formações volitivas, a consciência não surge. Quando não há consciência, a mentalidade-materialidade (nome e forma) não surge. Quando não há nascimento, o envelhecimento e morte não surgem.’ Ele compreende assim : ‘Desse modo o mundo cessa.’”
“Bhikkhus, quando um nobre discípulo assim compreende como na verdade é a origem e a cessação do mundo, ele é chamado um nobre discípulo com o entendimento perfeito, com a visão perfeita; ele realizou o verdadeiro Dhamma, ele vê esse verdadeiro Dhamma, ele possui o conhecimento de um treinando, que entrou na correnteza do Dhamma, um nobre com a sabedoria penetrante que está às portas do Imortal.” [SN.II.79] (SN XII.49)
* * *
“Bhikkhus, aqueles contemplativos ou brâmanes que não compreendem o envelhecimento e morte, a sua origem, a sua cessação, e o caminho que conduz à sua cessação; que não compreendem o nascimento ... ser/existir ... apego ... desejo ... sensação ... contato ... seis bases dos sentidos .... mentalidade-materialidade (nome e forma) ... consciência ... formações volitivas, a sua origem, a sua cessação, e o caminho que conduz à sua cessação: esses eu não considero serem contemplativos dentre contemplativos ou brâmanes dentre brâmanes, e esses veneráveis não irão, realizando por si mesmos através do conhecimento direto, nesta mesma vida entrar e permanecer no objetivo da vida contemplativa ou no objetivo da vida brâmane. [SN.XII.13]
Nesta conversa com o Venerável Ananda, o Buda o previne para não subestimar a profundidade do princípio da Origem Dependente:
“É maravilhoso e admirável, venerável senhor, que essa origem dependente seja tão profunda e difícil de ser vista, no entanto para mim ela parece tão simples, clara como a luz do dia”“Não diga isso, Ananda, não diga isso. Esta origem dependente é um ensinamento profundo, difícil de ser visto. É por não entender, não compreender e não penetrar de forma completa este ensinamento que os seres ficam confusos como um novelo embaraçado, como uma corda embolada cheia de nós, como juncos enredados, e não conseguem escapar da transmigração, dos planos de miséria, dos destinos ruins, dos mundos inferiores." [D.ll.92](DN15)
Quem já estudou a vida do Buda poderá se lembrar das suas ponderações pouco depois da Iluminação, quando ele ainda não havia começado e expor os ensinamentos. Naquela ocasião, o Buda relutava em ensinar, tal como relatado nas Escrituras:
“Eu pensei: ‘Este Dhamma que eu alcancei é profundo, difícil de ver e difícil de compreender, pacífico e sublime, que não pode ser alcançado através do mero raciocínio, sutil, para ser experimentado pelos sábios.“Mas, esta geração se delicia com a adesão, está excitada com a adesão, desfruta da adesão.É difícil para uma geração como esta ver esta verdade, isto é, a condicionalidade isto/aquilo e a origem dependente. E também é difícil de ver esta verdade, isto é, o cessar de todas as formações, o abandono de todas aquisições, o fim do desejo, desapego, cessação, Nibbana. Se eu fosse ensinar o Dhamma, os outros não me entenderiam e isso seria fatigante, problemático para mim .’.’” [Vin,I.4; MN.I.167] (MN 26)
Esse trecho menciona dois ensinamentos, o princípio da Origem Dependente e Nibbana, enfatizando tanto a sua profundidade como também a sua importância dentro da iluminação do Buda e dos seus ensinamentos.
Tipos de Origem Dependente encontrados nas escrituras
As referências textuais que lidam com o princípio da Origem Dependente podem ser divididas em duas categorias principais. Primeiro, aquelas que descrevem o princípio geral e segundo, aquelas que especificam os fatores constituintes ajuntados numa cadeia. O primeiro formato é com freqüência usado como um esboço geral precedendo o último. O último, encontrado com mais freqüência, é na maior parte das vezes expresso por si só.
A última descrição pode ser considerada como a manifestação prática do princípio da Origem Dependente, demonstrando como o processo natural segue o princípio geral.
Cada uma dessas duas categorias principais pode além disso ser dividida em dois membros, o primeiro mostrando o processo de origem, o segundo, o processo de cessação. O primeiro membro, mostrando o processo de origem, é chamado de samudayavara. É a seqüência no seu modo para diante e corresponde à segunda das Quatro Nobres Verdades, a causa do sofrimento (dukkha samudaya). O segundo membro, mostrando o processo de cessação, é chamado nirodhavara. É a seqüência no seu modo reverso e corresponde à terceira Nobre Verdade, a cessação do sofrimento (dukkha nirodha).
a. O princípio geral
Em essência, este princípio corresponde àquilo que em Pali é conhecido como idappaccayata, o princípio da condicionalidade.
A. Imasmim sati idam hoti: Quando existe isso, aquilo existe.
Imasuppada idam upajjati: Com o surgimento disso, aquilo surge.
B. Imasmim asati idam na hoti: Quando não existe isso, aquilo também não existe.
Imassa nirodha idam nirujjhati: Com a cessação disto, aquilo cessa.
b. O princípio em funcionamento
Avijja-paccaya sankhara
Da ignorância como condição, as formações volitivas[surgem]
Sankhara-paccaya viññanam
Das formações volitivas como condição, a consciência.
Viññana-paccaya namarupam
Da consciência como condição, a mentalidade-materialidade (nome e forma).
Namarupa-paccaya salayatanam
Da mentalidade-materialidade (nome e forma) como condição, as seis bases dos sentidos.
Salayatana-paccaya phasso
Das seis bases dos sentidos como condição, o contato.
Phassa-paccaya vedana
Do contato como condição, a sensação
Vedana-paccaya tanha
Da sensação como condição, o desejo.
Tanha-paccaya upadanam
Do desejo como condição, o apego.
Upadana-paccaya bhavo
Do apego como condição, o ser/existir.
Bhava-paccaya jati
Do ser/existir como condição, o nascimento.
Jati-paccaya jaramaranam
Do nascimento como condição, então o envelhecimento e morte,
Soka-parideva-dukkha-domanassupayasa sambhavan'ti
tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero surgem.
Evametassa kevalassa dukkhakkhandhassa samudayo hoti
Essa é a origem de toda essa massa de sofrimento.
Avijjaya tveva asesa-viraga nirodha sankhara-nirodho
Do desaparecimento e cessação sem deixar vestígios dessa mesma ignorância, cessam as formações volitivas.
Sankhara-nirodha viññana-nirodho
Da cessação das formações volitivas, cessa a consciência.
Viññana-nirodha namarupa-nirodho
Da cessação da consciência, cessa a mentalidade-materialidade (nome e forma).
Namarupa-nirodha salayatana-nirodho
Da cessação da mentalidade-materialidade (nome e forma), cessam as seis bases dos sentidos.
Salayatana-nirodha phassa-nirodho
Da cessação das seis bases dos sentidos, cessa o contato.
Phassa-nirodha vedana-nirodho
Da cessação do contato, cessa a sensação.
Vedana-nirodha tanha-nirodho
Da cessação da sensação, cessa o desejo.
Tanha-nirodha upadana-nirodho
Da cessação do desejo, cessa o apego.
Upadana-nirodha bhava-nirodho
Da cessação do apego, cessa o ser/existir.
Bhava-nirodha jati-nirodho
Da cessação do ser/existir, cessa o nascimento.
Jati-nirodha jaramaranam
Da cessação do nascimento, então, o envelhecimento e morte,
Soka-parideva-dukkha-domanassupayasa nirujjhan 'ti
tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero cessam.
Evametassa kevalassa dukkhakkhandhassa nirodho hoti
Observe que este formato trata o princípio da Origem Dependente como o processo do surgimento e cessação do sofrimento. Esse é o fraseado mais comumente encontrado nos textos. Em alguns lugares, ele é apresentado como o surgimento e a cessação do mundo, usando as palavras em Pali, ayam kho bhikkhave lokassa samudayo – “Essa, bhikkhus, é a origem do mundo,” e ayam kho bhikkhave lokassa atthangamo – “Esse, bhikkhus, é o fim do mundo” [SN.II.73] (SN.XII.44); ou emamayam loko samudayati – “Assim este mundo surge;” eemamayam loko nirujjhati – “Assim este mundo cessa” [SN.II.78] (SN XII.49). Ambos fraseados têm na verdade o mesmo significado, o que ficará claro uma vez que os termos sejam definidos.
Nos textos do Abhidhamma e nos Comentários o princípio da Origem Dependente também é conhecido como paccayakara, referindo-se à natureza interdependente das coisas.
O formato ampliado, mostrado acima, contém doze fatores ligados de forma interdependente como uma cadeia. Não possui início nem fim. A colocação da ignorância no início não indica que esta seja a Primeira Causa, ou Gênesis, de todas as coisas. A ignorância é colocada no início apenas para efeito de visibilidade, detendo o ciclo e estabelecendo um ponto de início no ponto considerado mais prático. Somos na verdade avisados a não tomar a ignorância como a Primeira Causa com a seguinte descrição do surgimento condicionado da ignorância - Asava-samudaya avijja-samudayo, asava-nirodha avijja-nirodho – a ignorância surge com o surgimento das impurezas e cessa com a cessação destas. [MN.I.55](MN 10)
Os doze elos do formato padrão do princípio da Origem Dependente são contados apenas da ignorância até o envelhecimento e morte. Quanto à ‘tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero’, esses são na verdade subprodutos do envelhecimento e morte, para quem possua impurezas (asava) e contaminações (kilesas), que se tornam o ‘fertilizante’ para o futuro surgimento de impurezas e por conseqüência da ignorância, que mais uma vez gira o ciclo.
O Buda nem sempre descrevia o ciclo de Origem Dependente em um formato fixo (do começo ao fim). O formato ampliado era empregado nos casos em que ele estava explicando o princípio de forma geral, mas quando ele estava abordando um problema em particular, com freqüência ele aplicava o formato em ordem reversa, assim: envelhecimento e morte <= nascimento <= ser/existir <= apego <= desejo <= sensação <= contato <= seis bases dos sentidos <= mentalidade-materialidade (nome e forma) <= consciência <= formações <= ignorância [SN.II.5-11 ,81] (SN.XII.20, XII.65). Em outras descrições ele poderia começar num dos fatores intermediários, dependendo do problema em questão. Por exemplo, ele poderia começar com o nascimento (jati) [SN.II.52](SN.XII.68), sensação (vedana) [MN.I.266] (MN 38), ouconsciência (viññana) [SN.II.77] (SN.XII.44), seguindo os passos para diante até envelhecimento e morte (jaramarana), ou regressando para chegar na ignorância (avijja). Ou ele poderia começar com um fator totalmente distinto dos doze elos, que depois era inserido na cadeia da Origem Dependente.
Um outro ponto digno de menção é que a origem dependente desses elos não tem o mesmo significado de ‘ser causado por’ como tal. Os fatores determinantes que fazem com que uma árvore cresça, por exemplo, incluem não somente a semente, mas também o solo, a umidade, o fertilizante, a temperatura do ar e assim por diante. Esses são todos os fatores ‘determinantes’. Além disso, ser um fator determinante não necessariamente implica uma ordem seqüencial no tempo. Por exemplo, no caso da árvore, os vários fatores determinantes, como a umidade, a temperatura, o solo e assim por diante, precisam existir em conjunto, não em seqüência, para que a árvore se beneficie. Além disso, alguns fatores determinantes são interdependentes, cada um condicionando a existência do outro, como por exemplo, um ovo é uma condição para uma galinha, enquanto que uma galinha é uma condição para um ovo.
(Continua)
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