Estudo aprofundado sobre o Kamma. Parte 1.

O Kamma no budismo é um assunto abrangente e um tanto quanto espinhoso. Não é a toa que nos últimos tempos eu venho dedicando parte do meu tempo livre à leitura de textos sobre o assunto. 
Em uma série de postagens apresentarei aqui o capítulo "Kamma nos ensinamentos do Buda", do livro Buddhadhamma, escrito pelo eminente monge theravada P. A. Payutto. 
Trata-se de um livro extenso, denso e de uma erudição impecável. Ele aborda quase todos, senão todos, os temas budistas, mesmo aqueles em que os leigos quase não ouvem falar. 
Sem maiores delongas, deixo a primeira parte do capítulo sobre o Kamma. 
As notas de rodapé são de autoria do tradutor do livro para o Inglês, Bruce Evan. 


Todos os seres são os donos do seu kamma
herdeiros do seu kamma 
nascidos do seu kamma
atados ao seu kamma
possuem o kamma como refúgio
MN 163



1. Compreendendo a Lei de Kamma
Kamma como uma lei da natureza


O Budismo ensina que todas as coisas, tanto materiais como imateriais, estão totalmente sujeitas à influência de causas e são interdependentes. Esse fluxo natural das coisas é chamado em termos usuais de “lei da natureza” e em Pali niyama que no sentido literal quer dizer “certeza” ou “modo fixo,” referindo-se ao fato de que condições específicas inevitavelmente levam a resultados correspondentes.
As leis da natureza, embora baseadas de modo uniforme no princípio da dependência causal, podem no entanto ser classificadas de acordo com os diferentes tipos de relação. Os comentários Budistas descrevem cinco categorias de leis da natureza ou niyama. Elas são:
1. Utuniyama: a lei da natureza que diz respeito aos objetos físicos e mudanças no ambiente natural, tais como o clima, a forma como as flores desabrocham durante o dia e se fecham à noite, a forma como o solo, água e nutrientes ajudam uma árvore a crescer e a forma como as coisas se desintegram e se decompõem. Esta perspectiva enfatiza as mudanças ocasionadas pelo calor ou temperatura.
2. Bijaniyama: a lei da natureza que diz respeito à hereditariedade que é melhor descrita com o ditado popular, “como a semente, assim a fruta.”
3. Cittaniyama: a lei da natureza que diz respeito aos processos mentais, o processo de reconhecimento dos objetos dos sentidos e as reações mentais associadas a eles.
4. Kammaniyama: a lei da natureza que diz respeito ao comportamento humano, o processo de geração das ações e os seus resultados. Em essência, isto é resumido nas palavras, “Boas ações trazem bons resultados, más ações trazem maus resultados.”
5. Dhammaniyama: a lei da natureza que governa a relação e interdependência de todas as coisas: a forma como as coisas surgem, existem e depois cessam. Todas os fenômenos estão sujeitos à mudança, estão num estado de aflição e são não-eu: essa é a Lei.
Os quatro primeiros niyama estão contidos ou estão baseados no quinto, Dhammaniyama, a Lei do Dhamma ou Lei da Natureza. Poderia ser questionada a razão de Dhammaniyama, pelo fato de ser a totalidade e também estar incluído como uma das subdivisões. Isso se deve por que as quatro primeiras categorias não abrangem a extensão completa de Dhammaniyama.
Para ilustrar: a população da Tailândia pode ser agrupada em diferentes categorias tais como a realeza, o governo, os funcionários públicos, os comerciantes e o povo; ou ela pode ser categorizada como a polícia, os militares, os funcionários públicos, os estudantes e o povo; ou ela pode ser classificada em uma série de outras formas. Na verdade o termo “povo” inclui todas as categorias do país. Os funcionários públicos, os chefes de família, a polícia, os militares, os estudantes e os comerciantes são todos igualmente membros do povo, mas eles são selecionados porque cada um desses grupos possui as suas próprias características distintas. Aquelas pessoas que não possuem uma característica relevante em particular são agrupadas sob o título genérico, “o povo.” Além disso, embora esses agrupamentos possam mudar de acordo com o seu propósito particular, eles sempre estarão incluídos como parte do “povo” ou “multidão” ou algum outro termo genérico semelhante. A inclusão de Dhammaniyama nos cinconiyama deve ser compreendida desta forma.
Se estas cinco leis da natureza são completas e abrangentes ou não, isto não é importante. Os comentadores (das escrituras em Pali) detalharam esses cinco grupos pois esta divisão se adequava às necessidades deles e qualquer outro grupo poderia ser incluído sob o quinto, Dhammaniyama, da forma como foi mostrado no exemplo acima. O ponto importante que devemos ter em mente é o propósito dos comentadores ao indicar esses cinco niyama. Com respeito a isso, três pontos podem ser mencionados:
Primeiro, este ensinamento enfatiza a perspectiva Budista que vê o fluxo das coisas como estando sujeito a causas e condições. Não importa quão em detalhe esta lei seja analisada, o que encontraremos será apenas o funcionamento dessa Lei ou do estado de interdependência. A compreensão dessa verdade nos permite aprender, viver e praticar com um entendimento claro e firme da forma como as coisas são. Eliminando, de forma definitiva, o problema de tentar responder a questões sobre um Deus Criador com o poder de desviar o fluxo da Lei ( a não ser que esse Deus se torne um dos fatores determinantes dentro do fluxo). Quando provocados com questões equivocadas como, “Sem um ser para criar essas leis, como elas podem ter surgido?” precisamos refletir que se deixadas por sua própria conta, todas as coisas irão funcionar de uma forma ou de outra e é assim como elas funcionam. É impossível que seja de qualquer outra forma. Os seres humanos, observando e estudando esse estado de coisas, passam a chamá-lo de “lei.” Mas quer seja chamado de lei ou não, isso não muda a sua forma de operação.
Segundo, ao analisarmos eventos, não devemos reduzí-los completamente a leis únicas. Na verdade, um evento na natureza pode surgir de qualquer uma dessas leis ou de uma combinação delas. Por exemplo, o desabrochar de uma flor de lótus durante o dia e o seu fechamento à noite não está sujeito apenas aos efeitos de utuniyama (leis físicas), mas também aos de bijaniyama (hereditariedade). Quando uma pessoa chora pode ser em grande parte devido aos efeitos de cittaniyama, por conta dos estados mentais tristes ou felizes, ou pode ser a operação de utuniyama, por conta de fumaça nos olhos.
Terceiro, e mais importante, os comentadores estão nos mostrando que a lei de kamma é apenas uma entre um grande número de leis da natureza. O fato de ser mostrada como apenas uma entre cinco leis diferentes nos lembra que nem todos os eventos são operações de kamma. Podemos dizer que o kamma é aquela força que dirige a sociedade humana ou decide os valores que ela tem. Embora seja apenas um tipo de lei da natureza, ela é a mais importante para nós como seres humanos, porque ela é nossa responsabilidade. Nós somos os criadores de kamma e kamma por seu lado molda o destino e as condições das nossas vidas.
A maioria das pessoas tende a perceber o mundo como estando parte sob o controle da natureza e parte sob o controle dos seres humanos. Neste modelo, kammaniyama é responsabilidade dos seres humanos, enquanto que os outros niyama são do domínio da natureza.
No processo de kammaniyama, o fator da intenção ou volição é crucial. Portanto, a lei de kamma é a lei que governa as operações da volição ou o mundo das ações e atividades mentais intencionais das pessoas. Quer lidemos ou não com os outros niyama, precisamos lidar com a lei de kamma e o nosso relacionamento com os outros niyama serão influenciados por kamma de forma inevitável. Assim a lei de kamma é de importância crucial ao regular o grau em que seremos capazes de criar e controlar as coisas ao nosso redor.
Falando corretamente, podemos dizer que a capacidade humana de entrar e se tornar um fator dentro do processo natural de causa e efeito, que por seu lado faz surgir a impressão de que somos capazes de controlar e manipular a natureza, se deve totalmente a esta lei de kamma. Nas áreas científica e tecnológica, por exemplo, interagimos com outros niyama, ou leis da natureza, estudando as suas verdades e exercendo influência sobre elas de acordo com a sua natureza, criando a impressão de que somos capazes de manipular e controlar o mundo natural.
Além disso, a nossa volição ou intenção molda os nossos relacionamentos pessoais e sociais, bem como nossa interação com as outras coisas no ambiente à nossa volta. Através da volição moldamos nossa própria identidade e estilo de vida, posição social e destino. Pelo fato da lei de kamma governar todo nosso universo volitivo e criativo é que os ensinamentos do Buda enfatizam muito a sua importância com a frase: Kammuna vattati loko: "As ações é que fazem o mundo girar" (o mundo é dirigido por kamma). [MN98]

A lei de kamma e a preferência social

Além dos cinco tipos de leis da natureza mencionados acima, existe um outro tipo de lei que é específico dos seres humanos e não está diretamente relacionado com a natureza. Trata-se de códigos de leis fixados e acordados pela sociedade, consistindo em decretos sociais, costumes e leis. Eles poderiam ser colocados no final da lista acima como um sexto tipo de lei, mas eles não possuem um nome em Pali. Vamos chamá-los de Preferência Social. [2] Esses códigos de leis sociais são o produto do pensamento humano e como tal estão relacionados com a lei de kamma. Eles não são, no entanto, a lei de kamma como tal. Eles apenas lhe servem de complemento e não possuem a mesma relação com a verdade da natureza como ocorre com a lei de kamma, como será mostrado a seguir. No entanto, porque existe uma relação com a lei de kamma eles tendem a ser confundidos com ela e os mal entendidos surgem com freqüência.
Como ambos, kammaniyama e a Preferência Social, são preocupações dos seres humanos e estão intimamente relacionados com a vida humana, é muito importante que as diferenças entre ambos seja compreendida com clareza.
De forma geral podemos afirmar que a lei de kamma é a lei da natureza que lida com as ações humanas, enquanto que a Preferência Social ou leis sociais fazem parte do processo de criação humana, relacionadas com a natureza à medida que são um produto do processo natural do pensamento humano. Em essência, com a lei de kamma os seres humanos recebem os frutos das suas ações de acordo com o processo da natureza, enquanto que nas leis sociais, os seres humanos assumem responsabilidade pelas suas ações através de um processo estabelecido por eles mesmos.

O significado de kamma

De um ponto de vista etimológico, kamma significa “trabalho” ou “ação.” Mas no contexto dos ensinamentos do Buda é definido de forma mais específica como “ação baseada na intenção” ou “atos cometidos de forma deliberada.” Ações desprovidas de intenção não são consideradas como kamma nos ensinamentos do Buda.
Esta definição, no entanto, é muito geral. Se quisermos esclarecer a abrangência completa do significado de kamma, precisamos analisá-lo em mais detalhe, dividindo-o em diferentes perspectivas ou níveis, desta forma:

a. Kamma como intenção
Em essência, kamma é intenção (cetana) e esta palavra inclui volição, escolha e decisão, o ímpeto mental que conduz à ação. A intenção é aquilo que incita e dirige todas as ações humanas, ambas, criativas e destrutivas e por isso é a essência de kamma, como enunciado pelo Buda, Cetanaham bhikkhave kammam vadami: Bhikkhus! Intenção, eu digo, é kamma. Pela intenção, a pessoa faz kamma através do corpo, linguagem, e mente.[AN III.415] (AN VI.63)
Neste ponto podemos gastar um pouco mais de tempo para ampliar a nossa compreensão dessa palavra “intenção.” Intenção no contexto Budista tem um significado muito mais sutil do que o uso mais geral dessa palavra. Em geral tendemos a usá-la quando queremos proporcionar um elo de ligação entre o pensamento interno e as suas ações externas resultantes. Por exemplo, podemos dizer, “Eu não tinha intenção de fazer isso,” “Eu não tinha intenção de dizer isso” ou “ela fez isso de forma intencional.”
Mas, de acordo com os ensinamentos Budistas, todas as ações e linguagem, todos os pensamentos, não importa quão fugazes sejam, e as respostas da mente a sensações recebidas através do olho, ouvido, nariz, língua, corpo e mente, sem exceção, contêm elementos de intenção. Assim, a intenção é a escolha volitiva feita pela mente em relação aos objetos para os quais a atenção é dirigida; é o fator que conduz a mente a se inclinar ou a repelir os vários objetos da atenção, ou de prosseguir em uma certa direção; é o que guia ou governa como a mente responde aos estímulos; é a força que planeja e organiza os movimentos da mente e no final das contas é aquilo que determina os estados experimentados pela mente.
Uma ocorrência de intenção é uma ocorrência de kamma. Quando há kamma existe resultado direto. Até mesmo um pensamento fugaz, embora não seja particularmente importante, não será no entanto desprovido de conseqüência. Será no mínimo uma “pequena nódoa” de kamma, adicionada ao fluxo de condições que moldam a atividade mental. Com a prática repetida, através da proliferação mental ou expressão por meio de ações externas, o resultado se tornará mais marcado sob a forma de traços de caráter, características físicas ou repercussões de fontes externas.
Uma intenção destrutiva não precisa ocorrer num nível grosseiro. Ela pode, por exemplo, levar à destruição algo muito pequeno, tal como quando rasgamos uma folha de papel com raiva . Muito embora o pedaço de papel em si não tenha importância, mesmo assim a ação tem algum efeito sobre a qualidade da mente. O efeito é bem distinto ao rasgarmos a folha de papel com um estado mental neutro, como ao jogar fora um papel de rascunho. Se existe execução repetida desse tipo de intenção enraivecida, os efeitos da acumulação irão se tornar cada vez mais claros e podem se desenvolver para níveis mais substanciais.
Considere as partículas de pó que entram flutuando desapercebidas num cômodo; não existe nenhuma partícula que esteja desprovida de conseqüência. É o mesmo com relação à mente. Mas o peso daquela conseqüência, além de depender da quantidade de “poeira” mental, também está relacionado com a qualidade da mente. Por exemplo, partículas de pó que pousem sobre a superfície de uma rua têm que ser em grande número até que a rua pareça estar suja. Partículas de pó que pousem no chão, embora numa quantidade muito menor poderão fazer com que o piso pareça mais sujo que a rua. Uma quantidade ainda menor de pó que se acumule sobre uma mesa fará com que ela pareça estar suficientemente suja para causar irritação. Uma quantidade ainda menor que pouse sobre um espelho irá fazer com que este pareça sujo e interferirá com a sua função. Uma pequena partícula de pó sobre as lentes de um óculos pode ser notada e pode prejudicar a visão. Da mesma forma, volição ou intenção, não importa quão pequena, não está desprovida de fruto. Como disse o Buda:
“Todo kamma, quer seja bom ou mal, produz frutos. Não existe kamma, não importa quão pequeno, que seja desprovido de fruto.” [Jataka IV.390]
De qualquer forma, os resultados mentais da lei de kamma em geral são negligenciados, então uma outra ilustração poderá ajudar:
Existem muitas variedades de água: água de esgoto, água de um canal, água da torneira e água destilada para preparar uma injeção hipodérmica. A água de esgoto é um hábitat aceitável para muitos tipos de animais aquáticos mas não é adequada para banho, para beber ou fins medicinais. A água de um canal pode ser usada para banho ou lavar roupas, mas não é potável. A água da torneira é potável mas não deve ser usada para preparar uma injeção hipodérmica. Se não há uma necessidade especial então a água da torneira servirá na maioria dos casos, mas seria imprudente usá-la para preparar uma injeção hipodérmica.
Da mesma forma, a mente possui níveis variados de refinamento ou nitidez, dependendo do kamma acumulado. Enquanto a mente estiver sendo usada num nível mais grosseiro, não haverá problema aparente, mas se for necessário usá-la num nível mais refinado, o kamma inábil existente, mesmo numa escala mínima, pode se tornar um obstáculo.

b. Kamma como fator condicionante
Expandindo nossa perspectiva, encontramos kamma como um componente dentro de todo processo vital, sendo o agente que molda a direção da vida. Isto é kamma com o sentido de “sankhara,” [3] como aparece no Ciclo da Origem Dependente [4], onde é descrito como o “agente que molda a mente.” Isto se refere aos fatores ou qualidades da mente que, com a intenção no comando, moldam a mente em estados bons, ruins ou neutros, que por sua vez moldam o processo do pensamento e os seus efeitos através do corpo e linguagem. Nesse contexto, kamma pode ser definido simplesmente como impulsos volitivos. Mesmo nessa definição tomamos a intenção como sendo a essência e é por isso que algumas vezes vemos a palavra sankhara traduzida simplesmente como intenção.

c. Kamma como responsabilidade pessoal
Olhemos agora um pouco mais para o exterior, para o nível do relacionamento do indivíduo com o mundo. Kamma neste sentido se refere à expressão dos pensamentos através da linguagem e ações. Isto é, o comportamento sob uma perspectiva ética, quer seja num nível estreito, imediato ou num nível mais amplo, incluindo o passado e o futuro. Kamma neste sentido corresponde ao significado amplo e geral dado acima. Esse é o significado de kamma que com mais freqüência é encontrado nas escrituras, onde ele ocorre como incentivo para encorajar ações boas e responsáveis, tal como nas palavras do Buda:

“Bhikkhus! Essas duas coisas são causa para o remorso. Quais duas? Algumas pessoas neste mundo não realizaram bom kamma, não foram hábeis, não realizaram méritos como salvaguarda contra o temor. Elas apenas realizaram kamma ruim, apenas kamma grosseiro, apenas kamma prejudicial. Como conseqüência elas experimentam o remorso, pensando, ‘Eu não realizei bom kamma, Eu apenas realizei kamma ruim.’” [Itivuttaka 30]

Vale a pena observar que na atualidade kamma não só é ensinado quase que exclusivamente sob esta perspectiva, mas também é amplamente tratado sob a perspectiva de vidas passadas.

d. Kamma como atividade social ou profissional
Sob um raio ainda mais amplo, isto é, sob a perspectiva da atividade social, temos kamma com o sentido de trabalho, labor ou profissão. Isto se refere aos estilos de vida e ações sociais que resultam da intenção, que por sua vez afetam a sociedade. Como mencionado no Vasettha Sutta:

"Uma pessoa não é brâmane pelo nascimento, nem pelo nascimento ela não é brâmane. Através da ação ela é brâmane. Através da ação ela não é brâmane.
"Pois os homens são agricultores através das suas ações, e através das suas ações eles também são trabalhadores; e os homens são comerciantes através das suas ações, e através das suas ações eles também são criados.
"E os homens são ladrões através das suas ações, e através das suas ações eles também são soldados; e os homens são brâmanes através das suas ações, e através das suas ações eles também são governantes.
“Portanto, é assim como aqueles verdadeiramente sábios vêm as ações como elas na verdade são, enxergando a origem dependente, com habilidade nas ações e nos seus resultados.
"As ações é que fazem o mundo girar, as ações fazem esta geração girar. Os seres vivos estão atados pelas ações, da mesma forma que a roda da carruagem pelo eixo. [MN98]

* * *

Após analisar esses quatro matizes distintos do significado da palavra “kamma,” convém mais uma vez enfatizar que qualquer definição de kamma tem que ser sempre baseada na intenção. A intenção é o fator que guia o nosso relacionamento com as outras coisas. Quer ajamos sob a influência das tendências inábeis, sob a forma de cobiça, raiva e delusão ou tendências hábeis, tudo está sob o controle da intenção.
Qualquer ação desprovida de intenção não tem impacto na lei de kamma. Isto é, não faz parte do escopo da lei de kamma, mas de algum outro niyama, tal como utuniyama (leis físicas). Essas ações possuem a mesma importância que um barranco desmoronando, uma pedra caindo de uma montanha ou um galho morto caindo de uma árvore.

Tipos de Kamma
No que se refere às suas qualidades ou raízes, kamma pode ser dividido em dois tipos principais. Eles são:

1. Akusala kamma: kamma que é inábil, ações que não são benéficas ou que são prejudiciais; em especial ações que nascem de akusala mula, as raízes da inabilidade, que são a cobiça, a raiva e a delusão.
2. Kusala kamma: ações que são hábeis ou benéficas; em especial ações que nascem das três kusala mula ou raízes da habilidade, que são a não-cobiça, a não-raiva e a não-delusão.
Como alternativa, kamma pode ser classificado de acordo com os caminhos ou canais através dos quais ele ocorre, sendo que estes são três:

1. Kamma corporal: ações intencionais com o corpo.
2. Kamma verbal: ações intencionais com a linguagem.
3. Kamma mental: ações intencionais com a mente.

Integrando ambas classificações descritas acima, temos no total seis tipos de kamma: kamma que é inábil corporal, verbal e mental; e kamma que é hábil corporal, verbal e mental.
Uma outra forma de classificar kamma é de acordo como os seus resultados. Nesta classificação existem quatro categorias:

1. Kamma escuro com um resultado sombrio: Isto se refere a ações corporais, ações verbais e ações mentais que são prejudiciais. Exemplos simples são matar, roubar, comportamento sexual impróprio, mentir e tomar substâncias embriagantes. [5]
2. Kamma claro com um resultado luminoso: Essas são ações corporais, verbais e mentais que são benéficas, tal como agir de acordo com as dez bases para a conduta hábil.[6]
3. Kamma escuro e claro com um resultado sombrio e luminoso: Ações corporais, verbais e mentais que são parcialmente prejudiciais e parcialmente benéficas.
4. Kamma nem escuro nem claro com um resultado nem sombrio nem luminoso, que conduz à cessação de kamma: Essa é a intenção de transcender os três tipos de kamma mencionados acima, ou em especial, desenvolver os Sete Fatores da Iluminação ou o Nobre Caminho Óctuplo.

Dos três canais de kamma – corpo, linguagem e mente – o kamma mental é considerado o mais importante e de mais longo alcance nos seus efeitos, como demonstrado no Cânone em Pali:

“Desses três tipos de ação, Tapassi, assim analisadas e diferenciadas, eu descrevo a ação mental como sendo a mais repreensível para a realização de uma ação prejudicial, para a perpetração de uma ação prejudicial, e não tanto a ação corporal e a ação verbal.” [MN.I.373] (MN56)

O kamma mental é considerado o mais importante porque é a origem de todos os demais kamma. O pensamento precede a ação por meio do corpo e linguagem. Ações corporais e verbais são derivadas do kamma mental.
Uma dos mais importantes fatores de influência no kamma mental é ditthi – ideias, entendimentos, crenças e preferências pessoais. As ideias têm uma influência importante no comportamento de um indivíduo, nas experiências de vida e ideais sociais. As ações, linguagem e a manipulação de situações são baseadas em idéias e preferências. Se existe um entendimento ou idéia incorreta, como conseqüência qualquer pensamento, linguagem e ações subseqüentes tenderão a fluir na direção errada. Se existe entendimento correto, então os pensamentos, linguagem e ações resultantes tenderão a fluir na direção adequada e benéfica. Isto se aplica não apenas ao nível pessoal mas ao nível social também. Por exemplo, uma sociedade que mantenha a crença de que a riqueza material é o objetivo mais precioso e desejável na vida irá se empenhar em obter posses materiais, medindo o progresso, prestígio e honra por meio da abundância dessas coisas. O estilo de vida dessas pessoas e o desenvolvimento dessa sociedade assumirá uma certa forma. Em contraste, uma sociedade que valoriza a paz mental e o contentamento como objetivo terá um estilo de vida e desenvolvimento marcadamente distinto.
Existem muitas ocasiões em que o Buda descreve o entendimento correto, o entendimento incorreto e a sua importância, como por exemplo:

“E o que, bhikkhus, é entendimento correto? Entendimento correto, eu digo, tem duas partes: existe o entendimento correto que está sujeito às impurezas, que participa dos méritos, amadurece onde existe apego; e existe o entendimento correto que é nobre, imaculado, supramundano, um elemento do caminho.
 E o que, bhikkhus, é o entendimento correto que está sujeito às impurezas, que participa dos méritos, amadurece onde existe apego? ‘Existe aquilo que é dado e o que é oferecido e o que é sacrificado; existe fruto e resultado de boas e más ações; existe este mundo e o outro mundo; existe a mãe e o pai; existem seres que renascem espontaneamente; existem no mundo brâmanes e contemplativos bons e virtuosos que, após terem conhecido e compreendido diretamente por eles mesmos, proclamam este mundo e o próximo.’ Esse é o entendimento correto que está sujeito às impurezas, que participa dos méritos, amadurece onde existe apego.” [MN.III.72] (MN 117)

* * *

"Bhikkhus, eu não vejo nenhuma outra única coisa, que faz com que qualidades prejudiciais que ainda não surgiram surjam, e qualidades benéficas que já surgiram declinem, como o entendimento incorreto. Para quem tem o entendimento incorreto, as qualidades prejudiciais que ainda não surgiram surgem, e as qualidades benéficas que já surgiram declinam." [AN I.306]

* * *

"Bhikkhus, eu não vejo nenhuma outra única coisa, que faz com que qualidades benéficas que ainda não surgiram surjam e qualidades prejudiciais que já surgiram diminuam, como o entendimento correto. Para quem tem o entendimento correto as qualidades benéficas que ainda não surgiram surgem, e qualidades prejudiciais que já surgiram declinam." [AN I.307]

* * *

"Bhikkhus, uma pessoa com o entendimento incorreto, qualquer kamma corporal, kamma verbal ou kamma mental que ela incite e realize, de acordo com esse entendimento, e qualquer que seja a sua intenção, anseio, inclinação, e atividades volitivas, tudo irá conduzir ao que não é desejado, não é querido, ao que é desagradável, ao dano e ao sofrimento. Por qual razão? Porque o entendimento é ruim.
 Suponham, bhikkhus, que uma semente de pepino amargo ou de abóbora amarga fosse plantada num solo fértil. Quaisquer nutrientes que a semente tome do solo e da água irão resultar no seu sabor amargo, pungente, e desagradável. Por qual razão? Porque a semente é ruim. Assim também, uma pessoa com o entendimento incorreto ... tudo irá conduzir ao que não é desejado, não é querido, ao que é desagradável, ao dano e ao sofrimento. Por qual razão? Porque o entendimento é ruim."
Bhikkhus, uma pessoa com o entendimento correto qualquer kamma corporal, kamma verbal ou kamma mental que ela incite e realize, de acordo com esse entendimento, e qualquer que seja a sua intenção, anseio, inclinação, e atividades volitivas, tudo irá conduzir ao que é desejado, é querido, ao que é agradável, ao bem-estar e à felicidade. Por qual razão? Porque o entendimento é bom.
 Suponham, bhikkhus, que uma semente de cana-de-açúcar, de arroz, ou uva, fosse plantada num solo fértil. Quaisquer nutrientes que a semente tome do solo e da água irão resultar no seu sabor doce, agradável, e delicioso. Por qual razão? Porque a semente é boa. Assim também, uma pessoa com o entendimento correto ... tudo irá conduzir ao que é desejado, é querido, ao que é agradável, ao bem-estar e à felicidade. Por qual razão? Porque o entendimento é bom." [AN I.314-315]

* * *

“Bhikkhus! Há aquele cujo nascimento neste mundo não é para o benefício de muitos, não é para a felicidade de muitos, mas para a ruína, para o dano de muitos, para o sofrimento de ambos devas e humanos. Quem é essa pessoa? É a pessoa com o entendimento incorreto, com idéias distorcidas. Alguém com o entendimento incorreto conduz muitos para longe da verdade e para a falsidade…
Bhikkhus! Há aquele cujo nascimento neste mundo é para o benefício de muitos, é para a felicidade de muitos, para o crescimento, para o benefício, para a felicidade de devas e humanos. Quem é essa pessoa? É a pessoa com o entendimento correto, que não tem idéias distorcidas. Alguém com o entendimento correto conduz muitos para longe da falsidade e para a verdade...”
 Bhikkhus! Eu não vejo outra condição que seja tão danosa como o entendimento incorreto. Das coisas que causam o dano, bhikkhus, o entendimento incorreto é a mais importante.” [AN I.33]

* * *

“Todas as ações são comandadas pela mente:
a mente é o senhor delas, a mente é quem as fabrica.

Aja ou fale com um estado mental impuro
que o sofrimento virá em seguida da mesma forma
como a roda da carroça segue as pegadas do boi.

Aja ou fale com um estado mental puro
que a felicidade virá em seguida da mesma forma
que a sombra acompanha o seu objeto por toda a parte, sem nunca abandoná-lo.” [Dh 1-2]

Notas:
[1] Kamma – em Pali – que é usado neste livro, não é tão conhecido como a ortografia em Sânscrito, karma, embora ambos tenham o mesmo significado.
[2] Em Tailandês as palavras "gummaniyahm" (kammaniyama) e 'sungkom niyom' (preferência social) possuem uma certa fluidez que é perdida na tradução.
[3] Formações volitivas.
[4] Paticcasamuppada.
[5] Essas são as práticas prescritas pelos Cinco Preceitos, o padrão moral básico de um praticante Budista.
[6] As dez bases para a conduta hábil: abster-se de matar, roubar, de manter conduta sexual imprópria, de usar linguagem mentirosa, linguagem maliciosa, linguagem grosseira, linguagem frívola, da cobiça, má vontade e entendimento incorreto. 

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